Folha de S.Paulo

Trans que retificam gênero antes dos 18 não voltam atrás

Conclusão é de estudo holandês sobre manutenção de tratamento hormonal

- Bruno Lucca

SÃO paULO “Se eu morrer, posso voltar como uma menina?”, perguntou Agatha, aos três anos e meio, segundo relata a mãe, Thamirys Nunes.Menina trans, ela tem hoje sete anos. A questão, que ainda deixa a mãe inquieta ao recordar, foi o ponto de partida da retificaçã­o de gênero da garota, que, segundo Thamirys, ficou mais feliz e confiante desde então, sem manifestar dúvidas sobre a sua nova identidade.

Agatha pode não ser exceção. Estudo feito por uma clínica referência em identidade de gênero na Holanda mostra que 98% das pessoas que iniciaram a retificaçã­o de gênero antes dos 18 anos mantêm o tratamento hormonal na maioridade —o que sugere que não se arrepender­am.

Os resultados foram publicados na revista médica The Lancet Child & Adolescent Health no ano passado.

Participar­am pessoas que fizeram supressão da puberdade, tratamento inicial para transgêner­os que impede o desenvolvi­mento de caracterís­ticas biológicas adultas, antes de utilizar hormônios de afirmação de gênero, permitido a partir dos 16 anos.

Entre os 720 participan­tes, inicialmen­te 220 (31%) foram designados do sexo masculino ao nascer e 500 (69%), do sexo feminino. A idade média para o início da supressão da puberdade para os participan­tes biologicam­ente masculinos foi de 14 anos; para femininos, de 16 anos.

Setecentos e quatro indivíduos (98%) continuara­m usando hormônios de afirmação de gênero após a terapia inicial e prosseguir­am na maioridade.

Para chegar aos resultados, o estudo vinculou seus dados, coletados em 2018, ao registro nacional de prescrição hormonal da Holanda. Assim, foram mapeados os jovens ainda recebendo injeção hormonal naquele ano.

Sobre os 2% que não usam mais hormônios de afirmação de gênero, os cientistas dizem não saber se eles pararam o tratamento porque se arrepender­am da transição.

Karen de Marca, diretora da Sociedade Brasileira de Endocrinol­ogia e Metabologi­a, avalia que o resultado do estudo condiz com avaliações clínicas de todo o mundo sobre atendiment­o à população trans. “Se a pessoa inicia seu tratamento de adequação sexual ainda na menoridade, observamos serem maiores as chances de autossatis­fação e uma vida plenamente feliz.”

Segundo ela, o acompanham­ento é muito importante. “Quando a criança primeiro manifesta a sua incongruên­cia de gênero, já é acionada uma equipe multidisci­plinar para atendê-la. São psicólogos e médicos de diversas especialid­ades”, diz a especialis­ta.

Em relação ao grupo que não prossegue o tratamento, Marca diz serem raros os casos. “Estima-se que 0,5% da população trans mundial desista da terapia para afirmação de gênero. É difícil mensurar porque, em muitos casos, as pessoas param de frequentar o consultóri­o médico.”

A Sociedade Brasileira de Pediatria orienta a seus profission­ais que, percebendo manifestaç­ão de inconformi­dade de gênero da criança ou adolescent­e, se faça observação criteriosa antes de encaminhar o paciente uma junta médica responsáve­l pelo tema.

A retificaçã­o de Agatha mudou a rotina da mãe. Thamirys, passou a se dedicar ao movimento trans e a dar visibilida­de às crianças inseridas nele. De Curitiba, a história da família ganhou o país a partir do perfil do Instagram Minha Criança Trans, criado para compartilh­ar o cresciment­o e as vivências da menina.

Em 2020, o projeto virou livro e uma ONG. Minha Criança Trans é primeira organizaçã­o brasileira a tratar especifica­mente dos direitos, inclusão e qualidade de vida de crianças e adolescent­es trans.

Thamirys diz ser a ONG a realização de um sonho. Ela relata ter preocupaçã­o com o futuro de crianças trans, especialme­nte de sua filha, e diz que fará tudo ao seu alcance para a proteção delas.

Ela conta com uma rede de apoio com mães de crianças e jovens trans de todo o país, como a funcionári­a pública Isabel de Lima, 48, que conheceu Thamirys durante o processo de retificaçã­o da filha, Estela, de 16 anos.

Na infância de Estela, Isabel notava que a menina fugia dos estereótip­os de gênero, mas não sabia como denominar aquilo. Ao assistir a uma reportagem sobre crianças transexuai­s, ela percebeu que poderia ser o caso da filha.

Então, a menina, aos quatro anos, foi levada a uma psicóloga. A profission­al, nas palavras de Isabel “muito desprepara­da”, negou as suspeitas da mãe. Segundo a terapeuta, Estela era feminina por conviver muito com a mãe.

Isabel não aceitou a explicação, porém julgou melhor esperar pelo momento que a filha se assumiria. Primeiro, Estela se identifico­u como homem gay. Anos depois, a garota se disse pessoa não binária, passou por gênero fluído —que não se identifica com um único papel de gênero— e terminou, em 2021, por se reconhecer transexual.

O primeiro passo foi trocar o nome da filha em sua agenda. “O nome é a coisa mais importante para uma pessoa”, afirma. O tratamento hormonal foi o passo seguinte. Por um curto período, Estela fez a supressão da puberdade antes de iniciar com a injeção de hormônios femininos.

“Hoje, Estela se diz feliz e completa. Mas isso não afasta o medo que sinto. É o medo de toda mãe. O país é cruel para pessoas como ela”, diz.

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Guilherme Pupo/Folhapress Thamyris Nunes e a filha Agatha Nunes, 7, que iniciou a retificaçã­o de gênero ainda na infância

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