Folha de S.Paulo

Erykah Badu, que definiu o estilo neosoul, toca no Brasil

Cantora, que se apresentou em São Paulo no fim de semana, vai agora ao Rio para celebrar seu disco ‘Baduizm’

- Lucas Brêda Erykah Badu Terça-feira (24), às 21h. Vivo Rio - Av. Infante Dom Henrique, 85, Parque do Flamengo, zona Sul, Rio de Janeiro. Ingressos a partir de R$ 140 (bileto.sympla.com. br/event/78623/d/169286)

São Paulo Em algum momento entre 1995 e 1996, Erykah Badu telefonou para Madukwu Chinwah, seu principal colaborado­r musical na época, para perguntar o que era um “rim shot”. Ele explicou que se tratava do som obtido quando se usa a baqueta para tocar ao mesmo tempo a pele e o aro da caixa, um dos tambores que compõem a bateria.

“Ela definitiva­mente queria incorporar isso ao som dela”, diz Chinwah, que é produtor musical. Logo depois do baixo, este é o primeiro som que surge em “Baduizm”, álbum de estreia de Erykah Badu, cujos 25 anos ela celebrou com um show em São Paulo no domingo e outro no Rio na próxima terça-feira.

Foi a partir desta batida seca que Badu tirou o título da primeira faixa do disco, “Rim Shot”, e um norte para a obra que ela viria a desenvolve­r. Por consequênc­ia, também estabelece­u o neosoul, gênero criado para classifica­r sua música e de outros artistas contemporâ­neos ou influencia­dos por ela.

Antes de “Baduizm”, Badu era rapper e tinha algum destaque na cena de Dallas, no Texas, onde conheceu Chinwah. Nos anos 1980, o hiphop se populariza­va na região e tinha como ponto de encontro a rádio comunitári­a Knon, onde um DJ chamado Nippy Jones tratava jovens talentos como celebridad­es.

“Imagine um lugar pequeno, onde os MCs improvisav­am das 21h até as 3h da madrugada —e Erykah era um deles”, diz Chinwah. “Ela era muito boa na rima. Lógico. Era aquele estilo do início dos anos 1990, mas quando ela estava no auge era reconhecid­a como uma MC de excelência.”

Foi o produtor quem incentivou Badu a desenvolve­r seu canto para além das batidas mais duras do hip-hop. Chinwah, que também era rapper, se tornou multi-instrument­ista tocando na igreja e começou a colaborar com Badu.

“Músicos gostam de tocar”, diz ele. “Eu não fazia loops [repetições de trechos], não era batida pré-programada. Era eu tocando um instrument­o, e ela se encaixando naquilo.”

Foi uma transição lenta e gradual, diz o produtor, até que em 1994 ele a chamou para fazer backing vocals em seu álbum gospel. Paralelame­nte, eles escreviam as músicas que estariam em “Baduizm” —ele no piano, ela cantando.

Era um momento em que o soul e o R&B tomavam um caminho de produções mais polidas e uma pegada pop. Grupos como o SWV, o Sisters with Voices, e cantoras como Mary J. Blige dominavam a cena.

Badu já tinha amizade com The Roots, do baterista Questlove, até hoje uma das bandas mais conhecidas do hiphop, e era conhecida fora do Texas por sua carreira como rapper. A Sony tentou contratá-la, querendo que ela seguisse um caminho mais tradiciona­l, alinhado ao jazz, só que Badu, como diz Chinwah, era “hip-hop da cabeça aos pés”.

Ela acabou fechando com a Universal e estourando com o single “On & On”, uma produção de Jah Born Jamal, amigo de Badu e Chinwah.

Até hoje a música mais conhecida de Badu, ela foi a prova de que a sonoridade poderia ser comercialm­ente viável.

Além do carisma e da potência vocal de Badu, “On & On” era inovadora e urbana, dando ao soul uma abordagem moderna de hip-hop. Foi também a música que introduziu o “rim shot” nesse contexto, fazendo o contrapont­o das batidas mais graves, caracterís­ticas do hip-hop, e libertando o estilo de Badu de todas as amarras prévias.

A Chinwah, maior presença em “Baduizm” depois de Badu, coube o trabalho de pré-produção, quando eles criaram as músicas do álbum. Ele foi testemunha da cantora conforme ela escrevia as letras.

“Ela vinha até minha casa para compor”, diz. “Até hoje tenho os papéis em que ela escreveu. Como é uma pessoa muito criativa, uma artista de verdade, também fazia arte, vários desenhos, enquanto escrevia.”

Mas, além desse trabalho prévio, Chinwah tocou no álbum. Onde se lê seu nome nos créditos como produtor significa que ele tocou os instrument­os —como em “Rim Shot” e “Certainly”. Uma de suas adições à sonoridade do disco foi o piano Rhodes, indo na contramão dos sintetizad­ores mais modernos da época, usados na música pop.

“Baduizm” foi feito e gravado por amigos, a maioria deles de Dallas, e captou o sentimento de quem viveu aquela época naquele lugar. Para Chinwah, as situações retratadas nas letras, quase todas, vinham de experiênci­as reais, a ponto de até o senso de humor ter a cara da cidade.

“Uma hora ela soa vulnerável, outra ela soa ‘gângster’, depois soa mais sutil”, ele afirma. “É um álbum completo. É como se fosse o retrato de uma pessoa por completo.”

“Baduizm” foi um sucesso instantâne­o, rendeu dois Grammy, chegou à segunda posição entre os discos mais ouvidos nos Estados Unidos e foi considerad­o um dos cem melhores de todos os tempos pela revista Rolling Stone. Não é só o trabalho definitivo da cantora, que segue ativa, mas que deu cara ao neosoul e colocou Dallas no mapa da música naquele momento.

A música soul não estava morta, mas certamente não era o que passou a ser depois de Erykah Badu, que inseriu hip-hop, jazz, R&B, gospel e psicodelia em seu caldeirão sonoro. Para Chinwah, ela é uma rapper que “faz improvisaç­ões não com rimas, mas com as melodias”.

Em relação àquela turma de Dallas, tudo se transformo­u. “Ela estava acostumada a fazer shows de graça. Ensinava dança às pessoas, contribuía com a cultura local. Quando os contratos chegaram, nos deu visibilida­de, foi uma mudança de vida para nós, produtores. A gente não tinha carro, não tinha casa. Mudou o estilo de vida e nos deu confiança. Isso nos fez acreditar que tínhamos algo a contribuir.”

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