Folha de S.Paulo

Doze ovelhas para Jacinda

Vulcões, vírus letais e crianças insones exigem muita energia feminina

- Bia Braune Jornalista e roteirista, é autora do livro “Almanaque da TV”. Escreve para a Rede Globo

Por várias noites, ao longo de dois anos, me apaziguava pegar no sono sabendo existir uma pessoa como ela. À frente de um país com 12 ovelhas para cada cidadão e um terço da população da Bahia, mas acreditand­o que cada indivíduo não só conta como representa todos os que hiperlotam o planeta com as mesmas angústias existencia­is.

Ler sobre a renúncia da primeira-ministra da Nova Zelândia,

Jacinda Ardern, me afetou. Não pelo cenário político da Oceania. Minha relação com a terra que os maoris chamam de Aotearoa é diversa.

Lá vivi uma doce experiênci­a de quase morte, sendo acudida por uma Mamãe Noel pilotando uma ambulância. Visitei plantações de kiwis gigantes. Estive em praças com crianças brincando perto de poças fumegantes de enxofre. E em Auckland, testemunhe­i o hábito que vários moradores têm de andar sistematic­amente descalços pelas ruas.

O que mais me impactou foi a vida pacata e segura, com IDH deslumbran­te. Para a subdesenvo­lvida que sou, uma fantasia acessível apenas a hobbits e elfos, posto que filmaram a Terra Média de Tolkien por ali.

Durante a pandemia, Jacinda tornou-se um farol em nossa desesperan­ça brazuca. Sem minimizar a “gripezinha” ou zombar da falta de ar dos doentes, mandava trancar a Nova Zelândia a cada nova leva de infectados. Isso solucionou a transmissã­o, mas fez despencar sua popularida­de diante de uma recessão inevitável.

Ao pedir para sair, Jacinda alegou dúvida sobre ainda ser a pessoa certa para governar, sobretudo sobre falta de energia. “Ela está fugindo porque sabe que será escorraçad­a”, bradou a oposição. “Falta mesmo energia”. Opa, peraí.

Jacinda, em quase seis anos no poder, lidou com o coronavíru­s, o tiroteio numa mesquita e a erupção de um vulcão que matou gente. Mais coelhinho da Duracell do que isso só se lembrarmos que ela pariu no meio do mandato e entrou para a história como a primeira líder mundial a discursar na ONU com bebê a tiracolo. Fora as lives oficiais interrompi­das pela filha que não conseguia dormir. Se isso não é ter a energia de duas Itaipus neozelande­sas, que venha o apagão.

Com apenas 29% de intenção de voto em pesquisa de dezembro, Jacinda —que do outro lado do mundo tanto nos serviu de alento— se retira. Espero, de verdade, que as 12 ovelhinhas que lhe cabem sejam tão empáticas quanto ela foi.

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Marcelo Martinez

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