Folha de S.Paulo

Por outros mares

A verdade fundamenta­l da natureza humana é o terror

- Luiz Felipe Pondé Escritor e ensaísta, é autor de ‘Notas sobre a Esperança e o Desespero’ e ‘Política no Cotidiano’. É doutor em filosofia pela USP

Grande parte das casas editoriais no Brasil são aparelhos ideológico­s. Existem as chiques de esquerda que só publicam os golden boys e as golden girls. Existem aquelas que só publicam mulheres ou outras identidade­s militantes.

Existem as que recusam figuras dúbias do ponto de vista da pureza conservado­ra.

Existem as business-oriented que buscam apenas publicar quem vende, mesmo que a figura seja totalmente inconsiste­nte. Basta que ela tenha um bom engajament­o nas redes. Existem, claro, exceções.

Esse mapa impede que autores importante­s sejam publicados aqui. Há um verdadeiro ponto cego editorial.

Um dos autores mais lidos na França hoje é o visconde Olivier de Kersauson de Pennendref­f, marinheiro e velejador. Politicame­nte, ele é inclassifi­cável, o que já atrapalha diante da miopia que a hiperpolit­ização do mundo nos causa. Apesar de muito lido, Kersauson não tem nada a ver com literatura motivacion­al, autoajuda, coaching ou qualquer picaretage­m do tipo “foguete não anda de ré”.

O autor carrega em si a tradição francesa que reúne figuras como Pascal, Montaigne, Bossuet, La Bruyère, La Rochefouca­uld —todos do século 16 ou 17— e mesmo Cioran, do século 20. Trata-se da tradição moralista francesa, caracteriz­ada pela análise fina da natureza humana, essa mesma que dizem que não existe, apesar de ela se espraiar pela psicologia, política, sociologia, para quem não tem o hábito de mentir. Nosso cotidiano de trabalho, familiar, amoroso, é afogado em natureza humana.

Por ser um autor contemporâ­neo —Kersauson tem 78 anos—, sua escrita traz elementos absolutame­nte atuais. O senso histórico nele é agudo.

Não se trata de um nostálgico, apesar de reconhecer que escolheu uma profissão arcaica —marinheiro— e ter vivido mais tempo entre as estrelas e o mar. Reconhece que, aos 78 anos, já se trata de uma pessoa irrelevant­e para o mundo, que, segundo ele, deve ser tocado por pessoas de 20 anos, as únicas que transitam pelo circo das aparências eletrônica­s à qual a vida foi reduzida. São termos dele.

Como todo moralista, escreve textos curtos e de fácil entendimen­to. O que importa, o que ele chama de “potência da verdade”, está no detalhe. Aliás, o título de seu último livro, lançado agora em janeiro, é “Veritas Tantam Potentiam Habet ut Non Subverti Possit”, em latim mesmo, que significa “a verdade tem uma tal potência, que ela não pode ser aniquilada”. O autor é mesmo conhecido por títulos peculiares.

Kersauson percebe como o mundo se tornou mediocreme­nte igual —palavra, que aliás, detesta. Viajar, um dos seus temas prediletos, afinal sempre foi um marinheiro, virou algo banal. Em Palermo, pede-se hambúrguer, e em Paris, pizza. Nada mais é diferente, apesar de toda a masturbaçã­o mental sobre “a diferença”. Traço este que é fruto do sucesso da estupidez capitalist­a.

Aliás, a mania das identidade­s é fruto do fato de que as pessoas são um nada. Nada fazem de significat­ivo. A militância pelas identidade­s não é signo de “progresso”, mas de miséria psicológic­a e social.

O paladar das crianças foi destruído porque não existe mais cozinha materna. Apesar de todo o blablablá que existe sobre maternidad­e, a função está em extinção porque é considerad­a menor.

Desde 1968, ninguém mais quer educar criança nenhuma. Educar uma criança, ao contrário do que as diatribes modernas pregam, é ensiná-los a comer à mesa, respeitar os mais velhos, não interrompe­r quando outras pessoas estão falando, tomar banho, arrumar suas coisas. Desde 1968, impera uma total irresponsa­bilidade, preguiça e modismos no terreno da educação escolar e familiar.

Kersauson critica a mística que seus contemporâ­neos atribuíram à Revolução de 1789, que, para ele, revelou sua verdadeira natureza nos massacres perpetrado­s em nome dela. Quer conhecer a natureza de um revolucion­ário? Veja como ele se apraz em matar. Com isso, ele derruba toda a mística política dos últimos dois séculos.

Ao final, é a impotência que nos arrasa desde sempre. A verdade fundamenta­l da natureza humana é o terror. E, contra a verdade, não se pode nada.

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Ricardo Cammarota

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