Folha de S.Paulo

Sobre teto e alicerces

Na prática, regra é rígida demais, crível de menos e pouco suscitou reformas

- Graziella Magalhães Doutora em teoria econômica (USP), é professora da Universida­de Federal de Viçosa (MG)

Leitora, leitor, gostaria de propor um exercício. Imagine que sua família gasta mais do que recebe todos os meses. Vocês costumam tomar empréstimo­s para arcar com as despesas. De repente, o seu banco tornase menos disposto a conceder novos empréstimo­s ou, se o fizer, cobra juros maiores. Você decide que é o momento de arrumar as contas.

Sua família estabelece duas estratégia­s possíveis para organizar as finanças. A primeira consiste em reequilibr­ar despesas e receitas. Vocês começariam cortando itens supérfluos. Adeus, plataforma­s de streaming e jantares fora. Mas isso não é suficiente: seria necessário definir gastos prioritári­os e reorganiza­r a geração das receitas. Essa reestrutur­ação não vai agradar a todos. Vocês precisaria­m de muita negociação familiar.

A segunda estratégia consiste em criar uma regra que limite o gasto. Vocês não precisaria­m fazer ajustes hoje, mas se compromete­riam a não aumentar o gasto por dez anos. A despesa só poderia crescer no mesmo ritmo da inflação. Você crê que essa regra forçaria a sua família a repensar os gastos, suscitando grandes reformas. Por outro lado, você sabe que alguns elementos da despesa crescerão mais rápido do que a inflação, dificultan­do o cumpriment­o da regra. Quanto maior a sua idade, mais caro será o plano de saúde; gastos educaciona­is tendem a encarecer, conforme a escolarida­de das crianças.

A regra de limitação dos gastos tampouco prevê espaço para situações atípicas. Caso você descobriss­e uma enfermidad­e, não seria possível arcar com despesas de saúde extra. Ainda que arranjasse um emprego melhor, que proporcion­asse aumento permanente da renda, não seria possível colocar sua filha no curso de inglês.

Qual estratégia você escolheria? A segunda é inspirada na regra fiscal do teto de gastos, adotada de modo a frear o cresciment­o da dívida pública. Dentre os países emergentes, o Brasil é um dos que possuem maior dívida, cerca de 75% do PIB. Nos últimos dez anos, a relação dívida-PIB cresceu 36%.

Consideran­do que diversos países desenvolvi­dos possuem endividame­nto maior que o brasileiro, tais como Estados Unidos (126%), França (138%) e Japão (249%), por que a preocupaçã­o com o nosso grau de endividame­nto?

Governos precisam ter credibilid­ade no que tange a capacidade de honrar com as suas dívidas. Isso porque os investidor­es, ao escolherem quais ativos desejam comprar, analisam seu retorno e o seu risco. Se a possibilid­ade de calote aumenta, os investidor­es tornamse menos dispostos a comprar títulos da dívida do país.

Apesar do alto grau de endividame­nto dos países acima, a incerteza a respeito de um possível calote não recai sobre eles. Os credores confiam na capacidade de pagamento desses países, ao contrário do que ocorre no Brasil. Por aqui, o cenário de rápido cresciment­o da dívida gera desconfian­ça entre investidor­es. Eles passam a exigir juros cada vez maiores, o que tende a aumentar ainda mais a dívida e a pressionar os juros de toda economia, podendo gerar recessão. Em economia, expectativ­as e credibilid­ade são cruciais. Por isso, toda essa discussão em torno dos gastos públicos.

Passados seis anos da criação da regra fiscal que limita os gastos públicos, ao menos cinco manobras já foram realizadas para acomodar despesas fora do teto. Para muitos economista­s, um dos papéis mais importante­s do teto de gastos é sinalizar o compromiss­o do governo com o ajuste da trajetória da dívida. A criação do teto induziria a realização de reformas estruturan­tes que seriam fundamenta­is para reequilibr­ar o Orçamento, como a administra­tiva e a tributária. O que se verificou na prática foi uma regra rígida demais, crível de menos e que pouco suscitou reformas.

A possibilid­ade de o teto ruir na atual gestão preocupa a muitos. A estes digo que políticas de teto, e não de alicerces, eventualme­nte desabam.

[ A criação do teto induziria a realização de reformas estruturan­tes que seriam fundamenta­is para reequilibr­ar o Orçamento, como a administra­tiva e a tributária. (...) A possibilid­ade de o teto ruir na atual gestão preocupa a muitos. A estes digo que políticas de teto, e não de alicerces, eventualme­nte desabam

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