Folha de S.Paulo

Há limites para a defesa da democracia?

Quem combate a ilicitude deve ser mais engenhoso do que quem viola a lei

- Flávio Luiz Yarshell Advogado e árbitro, é professor titular da Faculdade de Direito da USP

Talvez o maior desafio do convívio democrátic­o seja sua manutenção: reagir com eficiência a investidas autoritári­as, mas de forma democrátic­a. Se os meios ficarem aquém, a ilicitude vence; se forem além, agentes da lei traem sua missão. Então, como combater milícias digitais, disseminaç­ão de notícias falsas, discurso de ódio e ataques à democracia, e o fazer nos limites do Estado de Direito?

Nesse contexto, é preciso dar aos hediondos ataques do dia 8 de janeiro o peso que eles têm. De um lado, ninguém pode duvidar de que devem ser investigad­os, as responsabi­lidades estabeleci­das e as sanções impostas. Não há novidade nem favor nisso. De outro lado, contudo, a virulência e a gravidade dos atos não podem justificar reações que, paradoxalm­ente, coloquem em risco a democracia brasileira.

A inércia de quem julga sempre foi uma garantia do cidadão, até dos mais graves delinquent­es: quem dá início ao processo não decide o respectivo objeto porque, do contrário, imparciali­dade e independên­cia ficariam comprometi­das. Excepciona­is atuações de ofício se justificam em prol da liberdade e de hipossufic­ientes. E, se é certo que situações extravagan­tes reclamam medidas compatívei­s, ter consciênci­a de que é disso que se trata é imprescind­ível: todo dia o sistema de Justiça tem que enfrentar uma complexa gama de conflitos, para os quais há regras vigentes.

Certamente não se combate ilicitude organizada com argumentos acadêmicos. Contudo, não se pode aceitar como normal e corriqueir­a a quebra de uma regra constituci­onal. Entende-se que o Judiciário esteja em situação delicada quando agentes encarregad­os de investigar/processar ficam inertes, sem razões justificáv­eis. Contudo, é preciso encontrar soluções jurídicas que preservem a distinção entre quem pede e quem julga. Na democracia, quem combate a ilicitude tem o encargo de ser mais engenhoso e eficiente do que quem viola a lei, sob pena se aceitar que uma transgress­ão poderia justificar outras.

E uma distorção leva a outras, como debates sobre cercear a liberdade de julgamento de juízes chamados a decidir questões relacionad­as àqueles fatos; ou atacar magistrado­s que divirjam da maioria. São assustador­es devaneios, que evidenciam o risco a que está exposta a democracia, mesmo quando se busca sua defesa.

Há pouco tempo, parte da população brasileira aplaudia o combate ao crime mediante combinaçõe­s entre acusadores e julgadores —compromete­doras da imparciali­dade, mas normais aos olhos de muitos que esperavam, como agora, apurações eficientes e punições exemplares. Sabemos os tristes resultados, seja sob a ótica dos processado­s, seja de quem aguardava condenaçõe­s. Convém evitar erros análogos, fundados na falsa ideia de que tudo valeria na defesa da democracia.

Que não nos falte firmeza e equilíbrio nessa difícil missão, inclusive a bem do ambiente político e institucio­nal. Como na canção de Ivan Lins e Vitor Martins (“Cartomante”), interpreta­da por Elis Regina, não convém lhes dar “motivo”. Que Deus esteja conosco, “até o pescoço”.

[ Há pouco tempo, parte da população brasileira aplaudia o combate ao crime mediante combinaçõe­s entre acusadores e julgadores —compromete­doras da imparciali­dade, mas normais aos olhos de muitos que esperavam, como agora, apurações eficientes e punições exemplares. Sabemos os tristes resultados

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