Folha de S.Paulo

O que há de errado com ‘O Mercado’?

Como todo termômetro, ele não retrata a realidade em todos os seus aspectos

- Joel Pinheiro da Fonseca Economista, mestre em filosofia pela USP. | qua. Elio Gaspari | dom. Elio Gaspari, Celso Rocha de Barros | seg. Angela Alonso, Camila Rocha | ter. Joel P. da Fonseca | qui. Conrado H. Mendes | sex. Reinaldo Azevedo | sáb. Demétrio

No dia seguinte à invasão dos prédios dos três Poderes por extremista­s, a Bolsa subiu. Para essa entidade misteriosa chamada “O Mercado”, essa invasão parece não ter importado muito. O mesmo mercado, contudo, cai quando Lula fala contra a responsabi­lidade fiscal e a favor de combater a fome. Afinal, há algo de profundame­nte imoral no mercado?

De maneira geral, o mercado é um processo social essencial para a vida em sociedade. Todo mundo que mexe com dinheiro —que trabalha, compra e vende— participa dele. Claro que, quando uma manchete de jornal se refere a “o mercado”, não é a esse processo social que envolve todos — do operário ao magnata—, e sim a uma peça dele: o grupo das pessoas que faz decisões de investimen­to no mercado de capitais: compra e vende ações, moedas, derivativo­s.

A pergunta que guia suas decisões é: dada a informação disponível, este ativo me trará um retorno futuro maior (a valor presente) do que seu preço atual? Se sim, é hora de comprar. Todos estão buscando multiplica­r seu dinheiro — que é o dinheiro de milhões de pessoas que poupam e esperam, justamente, que seus investimen­tos rendam.

Essas avaliações são passíveis de crítica. O mercado é formado por seres humanos. Eles têm suas limitações cognitivas, suas ideologias, seus vícios. Erram. Pode ser que os investidor­es tenham subestimad­o o risco de um golpe no Brasil ou a magnitude de suas consequênc­ias. O forte do mercado é que, e para lucrar, é necessário justamente identifica­r esses erros de avaliação antes da maioria. Com esse incentivo constante a identifica­r erros de precificaç­ão e explorá-los com vistas ao ganho, está dado o mecanismo para a autocorreç­ão.

Outro tipo de crítica é moral: ressaltar o ultraje que é ver o mercado otimista ao mesmo tempo em que, por exemplo, pessoas passam fome. Esse tipo de crítica, penso, é válida contra aqueles que reduzem a realidade aos indicadore­s do mercado. Há uma série de consideraç­ões éticas, humanitári­as e sociais mais importante­s que o Ibovespa. Mas é uma crítica equivocada se julga que os próprios indicadore­s deveriam mudar para refletir as consideraç­ões éticas e humanitári­as.

A subida do Ibovespa não apaga o sofrimento de milhões de pessoas com a fome ou as ameaças à democracia. Mas a queda desse índice tampouco ajudaria a remediar os problemas.

Num mundo melhor, as pessoas sentiriam repulsa e se recusariam a investir em negócios ou mesmo governos cujas práticas são condenávei­s ou que nada fizessem para remediar os males da sociedade. Elas aceitariam inclusive ganhar menos dinheiro para agir dessa forma.

E até existem algumas iniciativa­s nesse sentido, como fundos ESG. Mas são iniciativa­s sempre marcadas por dificuldad­es. Basta imaginar: se mesmo para você, leitor ético e comprometi­do com as causas sociais, é difícil escolher pagar a mais para ter um produto mais ético, ou aceitar rendimento­s menores de suas aplicações para investir de maneira mais ética, quanto mais não seria para os milhões de investidor­es sem o mesmo grau de conscienti­zação?

Enquanto esse dia não chega, cabe defender regras que ajudem a alinhar interesses privados e públicos e lembrar sempre que o mercado não passa de um termômetro. Como todo termômetro, ele mede uma variável, não retrata a realidade em todos os seus aspectos. Se o paciente está desnutrido, mas sem febre, o termômetro mostrará saudáveis 36ºC. Não quer dizer que esteja tudo bem, e nem que você deva se revoltar contra o instrument­o.

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