Folha de S.Paulo

Monólogo explora cotidiano de refugiados em Boa Vista

- Mayara Paixão

são paulo Umapergunt­acorriquei­ra num país onde a pobreza avança e a atuação do Estado fica para trás abre o monólogo “Boa Noite Boa Vista”: o que posso fazer para ajudar?

O público não sai com respostas da peça protagoniz­ada por Eduardo Mossri em cartaz no Sesc Pompeia, na capital paulista, mas é instigado a pensar. O espetáculo nasceu de uma viagem do ator a Boa Vista, em Roraima, um dos centros da crise migratória que anualmente traz ao Brasil milhares de imigrantes e refugiados —em especial da Venezuela, mas também de países como Cuba, Haiti e Colômbia.

Mossri encena histórias que colheu: fala da presença maciça de crianças e de relatos específico­s de imigrantes LGBTQIA+ e, ao mesmo tempo, tenta encontrar pontos comuns do cotidiano em Boa Vista.

Roraima é um dos estados do país com o maior número de pedidos de refúgio, devido à proximidad­e com Venezuela e Guiana. Em 2021, foram 10.403 solicitaçõ­es ali —quase

15% do total daquele ano.

A saturação do local se acentua com um fluxo migratório que só cresce. De janeiro a novembro do último ano, cerca de 45 mil pessoas pediram refúgio no Brasil, quase 15 mil a mais que no ano anterior.

O ator ficou um mês na cidade, onde ouviu os depoimento­s que primeiro ganharam a forma de um diário — até então sem a pretensão de virar um espetáculo. Da pergunta-chave que permeia o trabalho veio a conclusão de que a melhor forma de ajudar era levar o que observou para o palco, sensibiliz­ando assim mais pessoas sobre o tema da imigração, um dos principais desafios internacio­nais.

O monólogo também forma uma trinca de trabalhos de Mossri relacionad­os a direitos humanos. Primeiro com “Ivan e os Cachorros” (2012), sobre os impactos sociais da crise econômica que assolou a Rússia nos anos 1980, e depois com “Cartas Libanesas” (2015), em que o ator, descendent­e de libaneses, aborda histórias de imigrantes do país do Oriente Médio que desembarca­ram no Brasil.

Há ainda “Órfãos da Terra”, produção da Globo que chegou à TV em 2019. Na novela, Mossri interpreto­u Faruq, médico sírio que perdeu a família na guerra civil que há mais de dez anos assola o país, uma ditadura comandada por Bashar Al-Assad, e emigrou para o Brasil, onde encontrou dificuldad­es para exercer a profissão —roteiro comum ao de imigrantes formados na área que precisam revalidar o diploma.

A familiarid­ade com o tema, pelo qual diz ter se interessad­o como forma de entender suas raízes, aparece em diversas partes. Mossri instiga o público a participar respondend­o a perguntas sobre imigração.

A obra chama a atenção para assuntos que, diante de tamanha demanda de refúgio, podem parecer secundário­s. A certa altura, o ator encena um trecho no qual um imigrante, cuja nacionalid­ade não é dita, afirma que está refugiado. Mas ele não é um refugiado.

Pode parecer uma diferença de menor importânci­a na escolha dos termos, mas a provocação espelha uma das questões que mais preocupam especialis­tas em migração: a enorme fila de pessoas que solicitara­m refúgio e após anos ainda não tiveram seus requerimen­tos analisados.

Há debates e pesquisas em curso sobre o assunto, como a tese recente da psicóloga Andressa Martino, na UFABC (Universida­de Federal do ABC), na qual afirma que, com essa “provisorie­dade permanente”, o Estado acaba por criar um novo rótulo, uma nova categoria migratória: a do eterno solicitant­e de refúgio, que vive num limbo de inseguranç­a, sem se sentir um cidadão brasileiro.

“Boa Noite Boa Vista” tem direção de Antonio Januzelli, o Janô, professor de Mossri na universida­de. Seu método, o laboratóri­o dramático do ator, no qual investe no trabalho do intérprete, com encenações que surgem de inquietaçõ­es internas dos atores, é parte fundamenta­l do espetáculo, que segue no Sesc Pompeia até 17 de fevereiro, com uma sessão com intérprete de Libras no dia 8.

Boa Noite Boa Vista

Autor: Eduardo Mossri. Dir.: Antonio Januzelli. Quando: Até 17/2; terça a sexta, às 20h30. Onde: Onde: Sesc Pompeia. Quanto: R$ 30 (inteira), R$ 15 (meia-entrada) e R$ 9 (credencial plena). Classifica­ção: 12 anos

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Ernesto Benavides/AFP
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Taba Benedicto/Divulgação Sesc Pompeia Ator Eduardo Mossri durante peça ‘Boa Noite Boa Vista’

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