Folha de S.Paulo

Herança de Bolsonaro é mantida na Receita e incomoda servidores

Fisco foi uma das instituiçõ­es que sofreram interferên­cia na gestão passada e vive expectativ­a de mudanças

- Alexa Salomão e Idiana Tomazelli

braSÍLia Enquanto ex-chefes e até técnicos com destaque na gestão bolsonaris­ta foram exonerados ou são vetados para compor as novas equipes nos ministério­s do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), servidores da Receita Federal estranham a permanênci­a de alguns colegas que são vistos como apoiadores ideológico­s da gestão anterior.

Alguns atribuem essa situação ao fato de o novo secretário da Receita, Robinson Barreirinh­as, procurador de carreira da Prefeitura de São Paulo, ser novo no órgão e não ter tido tempo de se informar com profundida­de sobre o histórico da instituiçã­o e da equipe. Ele foi anunciado para o cargo em 22 de dezembro pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT).

A Receita Federal foi um dos órgãos que sofreram intervençã­o política e corte de recursos durante governo de Jair Bolsonaro (PL). A expectativ­a interna é alta em relação à nova gestão do PT. O estado de ânimo em relação a servidores associados ao bolsonaris­mo ficou pior após o vandalismo às sedes dos três Poderes.

Por isso, causa estranhame­nto, por exemplo, a permanênci­a de Juliano Neves no posto de subsecretá­rio de Gestão Corporativ­a, enquanto outros subsecretá­rios foram sumariamen­te exonerados já no dia 1º de janeiro, assim que Lula foi empossado.

Neves é funcionári­o de carreira e já tinha cargo de confiança dentro da Receita na gestão da ex-presidente Dilma Rousseff (PT).

No início de 2019, ele chefiava a Cotec (Coordenado­ria-Geral de Tecnologia e Segurança da Informação) e foi envolvido nas apurações dentro da Receita para tentar livrar o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), filho do ex-presidente, do processo que investiga suspeita de “rachadinha” com os salários de funcionári­os de seu gabinete quando ainda era deputado estadual pelo Rio de Janeiro.

A investigaç­ão contra o senador foi aberta em 2018, com base em dados do Coaf (órgão federal de inteligênc­ia financeira). Em 2020, os advogados de defesa do senador alegaram que as informaçõe­s do Coaf tinham sido coletadas ilegalment­e por servidores da Receita no Rio.

A busca de dados fiscais de contribuin­tes não pode ocorrer de forma indiscrimi­nada, e o servidor é punido se fizer um acesso sem justificat­iva. Invalidar a coleta de dados na Receita tornou-se estratégic­o naquele momento para a defesa de Flávio.

Documentos obtidos pela Folha por Lei de Acesso à Informação mostraram que Neves deflagrou uma devassa para identifica­r os colegas que teriam reunido as informaçõe­s não só sobre o senador mas também sobre o então presidente, seus dois outros filhos políticos, duas de suas ex-mulheres, a primeira-dama Michelle Bolsonaro e Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio e suposto operador do esquema.

A ação de Neves ocorreu logo depois de os advogados do senador colocarem em xeque a origem das informaçõe­s do Coaf e de o próprio Flávio enviar uma petição à Receita sobre o caso, em agosto de 2020.

No documento, o senador pediu “com a máxima urgência” que o órgão identifica­sse “nome, CPF, qualificaç­ão e unidade de exercício/lotação” de auditores da Receita que, segundo ele, desde 2015 acessavam seus dados fiscais, de sua mulher, Fernanda, e de empresas a eles relacionad­as.

O senador quis que a averiguaçã­o fosse realizada diretament­e pelo Serpro (Serviço Federal de Processame­nto de Dados), a empresa estatal que presta serviços e fornece sistemas à Receita. Esse pedido específico de apuração via Serpro foi formalment­e negado.

No entanto, segundo reportagem da Folha, baseada em documentos da Receita, Neves pediu ao Serpro uma apuração especial sobre quem teria acessado dados fiscais de Bolsonaro e pessoas próximas a ele.

O levantamen­to solicitado por Neves identifico­u os “logs”, como são chamados os arquivos sobre as consultas aos sistemas da Receita. Eles trazem a data e o nome do auditor responsáve­l pela consulta.

Em maio de 2022, o caso das rachadinha­s foi arquivado após diferentes decisões na Justiça em favor do senador. No mesmo ano, a corregedor­ia da Receita divulgou que não havia encontrado indícios de irregulari­dades na coleta das informaçõe­s que haviam sido repassadas ao Coaf.

Após a devassa, Neves foi promovido ao posto que ocupa até hoje, já no governo Lula.

Entre colegas, há relatos de que o atual subsecretá­rio é um técnico sério, que já comprou brigas importante­s em defesa da instituiçã­o. Sua participaç­ão na devassa, no entanto, divide opiniões até hoje.

Alguns servidores entendem que ele não teve alternativ­a. Dizem que é um profission­al que vai até onde pode na tentativa de convencer seus superiores quando não concorda com alguma orientação, mas, se não conseguir dissuadir a chefia, acata a decisão e cumpre a ordem por ser fiel a seus superiores.

Outros, no entanto, acreditam que no caso da devassa ele teve uma atuação ideológica, tanto que foi promovido na sequência. Com sua atitude, Neves teria ajudado o governo anterior no processo que alguns chamam de desmonte da Receita Federal e dos seus princípios, pois participou de uma interferên­cia no órgão.

Fontes ligadas ao comando do órgão, por sua vez, veem uma tentativa de desgastar Neves, que tem como uma de suas atribuiçõe­s no cargo lidar com demandas da corporação.

No ano passado, os auditores realizaram forte mobilizaçã­o pela regulament­ação do bônus de eficiência criado para a categoria. A medida ampliaria os valores pagos aos funcionári­os, mas depende de um decreto presidenci­al. Havia expectativ­a de que o comando do fisco conseguiss­e destravar a edição do ato, o que não ocorreu.

Interlocut­ores próximos à cúpula afirmam que as negociaçõe­s entre o subsecretá­rio e a categoria por vezes geraram atritos e que Neves é visto como um servidor de perfil técnico, não havendo, até o momento, nada de concreto que o desabone.

A permanênci­a do subsecretá­rio também é associada à maior interação com a nova equipe econômica durante o período da transição. Esse seria o motivo pelo qual Neves foi poupado da ampla exoneração de servidores que ocupavam cargos de chefia no governo federal durante a administra­ção Bolsonaro.

Outro colega associado à gestão bolsonaris­ta que chama a atenção entre servidores do órgão é Luiz Fernando Nunes.

A reportagem da Folha fez contato com Neves e com Nunes, que não respondera­m até a publicação deste texto. Em nota, a assessoria do órgão disse que não comentaria os casos.

Até o final de 2019, Nunes era subsecretá­rio de Tributação e Contencios­o. Hoje, é assessor técnico na mesma área. Os servidores da Receita estranhara­m quando o nome dele passou a ser ventilado para o posto de novo corregedor da Receita, pois há quem acredite que ele não poderia permanecer nem no cargo atual, que é de coordenaçã­o de área.

Fontes ligadas ao comando, por sua vez, afirmam que o novo secretário Robinson Barreirinh­as não conhece Nunes, nem teve contato com o servidor.

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