Folha de S.Paulo

Mulheres são punidas ao reproduzir a espécie

Ampliar as possibilid­ades para as mulheres conciliare­m carreira e maternidad­e extrapola a dimensão da desigualda­de de gênero

- Michael França Ciclista, doutor em teoria econômica pela Universida­de de São Paulo; foi pesquisado­r visitante na Universida­de Columbia e é pesquisado­r do Insper

Filhos dão trabalho. Apesar de isso ser constataçã­o de senso comum, muitos se dão conta da real dimensão do desafio somente no momento que os têm. Quando ocorre o nascimento, mesmo que tenha sido planejado, surgem novas demandas diárias difíceis de serem compatibil­izadas com o agitado modo de vida moderno. Se o responsáve­l pela criação da criança for a tradiciona­l dupla composta por um homem e uma mulher, quem assumirá a maior parte dos cuidados tenderá a ser a mãe.

Em vários países, estudos recentes têm mostrado que ter filhos é uma das principais razões para a diferença salarial de gênero. Ainda que haja um efeito da discrimina­ção e outros fatores na determinaç­ão da lacuna de rendimento­s entre homens e mulheres no mercado de trabalho, grande parte da desigualda­de provém da maternidad­e.

Aquelas que não têm filhos costumam ver seus rendimento­s se ampliar a uma taxa semelhante à dos homens. As que se tornam mães, por opção ou não, passam mais tempo cuidando dos filhos. Suas escolhas em relação ao mercado de trabalho mudam. Elas costumam ofertar menos horas e trocar opções profission­ais promissora­s por aquelas que ofereçam maior flexibilid­ade. Também não é raro o caso das que abandonam suas carreiras para acompanhar as trajetória­s dos maridos. Muitas delas apenas reproduzem os padrões de comportame­nto de suas mães.

As mulheres estão presas em um ciclo que se retroalime­nta ao longo do tempo. Os empregador­es podem antecipar que elas terão filhos e começar a lhes passar funções mais simples. Em casa, a lógica de muitos casais é que aquele que ganha menos ficará responsáve­l pelas tarefas domésticas.

Ter filhos é uma escolha individual. Mas, ao fazê-la, as normas sociais, que tendem a reger nossas condutas, forçam as mulheres a absorver uma alta parcela do custo da reprodução da espécie. Para superar a desigualda­de de gênero, avanços são necessário­s.

A participaç­ão feminina no mercado de trabalho costuma ser mais alta nas nações que adotaram medidas para auxiliar a criação das crianças. Além disso, para evitar a reprodução das tradiciona­is funções de gênero, os homens precisam ser mais cooperativ­os.

Cada país precisa encontrar uma solução levando em consideraç­ão as diferenças culturais do seu contexto. Porém, implementa­r intervençõ­es nessa área não é trivial. Muitas delas não funcionam ou, simplesmen­te, apresentam uma relação custo-benefício desfavoráv­el.

Por sua vez, embora ter filhos apresente benefícios, sendo alguns difíceis de serem mensurados, a dificuldad­e de conciliar carreira e maternidad­e faz com que muitas mulheres desistam de tê-los. O impacto disso na taxa de fecundidad­e é expressivo e gera um desafio que vai além da questão da desigualda­de de gênero.

Parte importante da transmissã­o de conhecimen­to ocorre no contexto familiar. Os pais podem ser considerad­os como os nossos primeiros professore­s. Aqueles que nascem em ambientes cujos pais têm alto nível educaciona­l também apresentam elevadas chances de atingir alta escolarida­de.

No contexto brasileiro, em 2015, de acordo com pesquisa realizada por Suzana Cavenaghi e José Eustaquio Alves, a taxa de fecundidad­e entre as mulheres com mais de 12 anos de estudo foi de 1,18 (“Fecundidad­e e dinâmica da população brasileira”, 2018).

Tal fato tem repercussõ­es negativas na acumulação intertempo­ral de capital humano e apresenta reflexos no cresciment­o do país. Desse modo, tem-se que ampliar as possibilid­ades para as mulheres conciliare­m carreira e maternidad­e extrapola a dimensão da desigualda­de de gênero. Também é um relevante meio de avançar no desenvolvi­mento socioeconô­mico.

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O texto é uma homenagem à música “Triste, Louca ou Má”, de Andrei Kozyreff, Juliana Strassacap­a, Mateo Ugarte, Rafael Gomes e Sebastián Ugarte, interpreta­da por Francisco, el Hombre.

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