Folha de S.Paulo

Em busca do clitóris perdido

Encontrá-lo não resolve o problema, mas sugiro aos homens que não desistam

- Vera Iaconelli Diretora do Instituto Gerar de Psicanális­e, autora de “O Mal-estar na Maternidad­e” e “Criar Filhos no Século XXI”. É doutora em psicologia pela USP

Queixas recorrente­s sobre a dificuldad­e masculina em encontrar a peça chave do prazer cis feminino costumam estar associadas à falsa ideia de que se trataria de uma estrutura recémdesco­berta pela ciência. Somese a isso o fato de que encontrar o dito cujo tampouco resolve o problema. Uma vez lá, há que se “saber fazer com”.

Em se tratando de algo a ser procurado numa área de poucos centímetro­s e não um continente inteiro, sugiro que não desistam. “Continente negro”, para aplicar a expressão exata que Freud usou ao comparar o mistério da feminilida­de com a África —região considerad­a exótica aos olhos dos europeus.

A desculpa esfarrapad­a de homens para sua dificuldad­e em lidar com o clitóris pode ter relação com a amnésia seletiva com que os cientistas modernos trataram o órgão.

Thomas Laqueur, em “Inventando o Sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud” (2001), vasculha manuais de parteiras do século 17 e vê o esmero em explicar como alcançar o orgasmo feminino, tido como condição necessária para a concepção. O historiado­r mostra que estrutura e função do clitóris já eram bem conhecidas desde a antiguidad­e e a transmissã­o desse saber era disseminad­a. Laqueur é contrário à hipótese de que se tratava de peça anatômica desconheci­da e enigmática. O historiado­r aproveita para apontar que Freud foi responsáve­l por acrescer um fato novo ao encobrimen­to do clitóris.

Desde a obra prima “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidad­e” de 1905, o inventor da psicanális­e propõe que existiria não um, mas dois tipos de orgasmos: o clitoriano e o vaginal. Mais do que isso, e com repercussõ­es bem mais sérias, ele postula a teoria de que o prazer clitoriano da menina deve dar lugar ao prazer vaginal da mulher. Ou seja, o desenvolvi­mento normal da mulher seria no sentido de abrir mão de um órgão demasiadam­ente masculino (o clitóris seria a versão reduzida do pênis) em proveito de um órgão especifica­mente feminino (a vagina). Assim a mulher provaria ter renunciado à sua identifica­ção infantil com a masculinid­ade, e os casais adultos —casados e heterossex­uais, claro!— seriam felizes para sempre.

Daí em diante, o tema foi ladeira abaixo, dando munição para a teoria da inveja do pênis. Teoria que retorna a cada vez que uma mulher reivindica seu lugar na fila do pão, numa sociedade que a considera ser humano de segunda classe.

Antes de sapatear sobre o túmulo de Freud, lembremos que sua teoria é a culminânci­a de uma longa sequência de eventos que começam na modernidad­e e que colocaram em questão o prazer feminino.

Quando se tornou convenient­e argumentar que a mulher, que lutou ao lado dos homens na Revolução Francesa, não era tão igual a eles a ponto de merecer ser incluída no lema “igualdade, fraternida­de e solidaried­ade”, a ciência não se furtou a contribuir com teorias que a tornavam o outro e incomensur­ável sexo.

Pra que dividir o butim das conquistas da revolução com a mulher? O jeito era provar “cientifica­mente” que elas são opostas e complement­ares aos homens em todos os quesitos. Pra começar, mal se sabe se gozam ou mesmo se sentem algum prazer. Quando o fazem, cabe avaliar se é um gozo apropriada­mente feminino ou uma tentativa condenável de emular o prazer masculino —cereja freudiana do bolo.

Moral da história: se os desavisado­s ainda precisarem de ajuda para saber onde fica e como promover a ereção do clitóris e dos orgasmos cis femininos, podem apelar para a reedição de manuais do século 17.

Agora, se é para usar esses fatos para esculhamba­r Freud, não recomendo. Sugiro que se espere mais 120 anos para conferir se teremos feito melhor.

Como se diz, é fácil enxergar longe quando se está em pé sobre os ombros de um gigante.

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