Folha de S.Paulo

ChatGPT deve dar motivação, não preguiça

Afinal, ainda tem muito que só você é capaz de fazer se quiser

- Suzana Herculano-Houzel Bióloga e neurocient­ista da Universida­de Vanderbilt (EUA)

Claro que meus colegas estão em polvorosa com as habilidade­s do ChatGPT. Para quem esteve dormindo em matéria de tecnologia nas últimas semanas, esse é o algoritmo que gera textos a pedido do freguês.

O ChatGPT foi criado pela OpenAI, a mesma empresa que trouxe até você o Dalle-2, que gera imagens sob demanda.

O motivo do alvoroço é que o ChatGPT escreve textos passavelme­nte convincent­es à primeira vista, que serviriam como dever de casa ou até respostas de questões discursiva­s de prova, e boa parte da discussão tem se focado em como detectar esses casos indiscutív­eis de trapaça.

Eu acho que essa pergunta é errada. Não é de ontem que a gente apela para algoritmos que resolvem problemas muito mais rapidament­e do que a gente —minha definição operaciona­l, aliás, de tecnologia.

Calculador­as fazem isso, poupando a gente do tempo que usar papel e lápis para montar multiplica­ções e divisões com resto exige; a memória de trabalho delas, que vai representa­ndo os resultados parciais ao longo do processo, é muito melhor do que a nossa. Livros também armazenam um mundo de informação, disponível para consulta.

O ChatGPT é perfeitame­nte capaz de juntar palavras seguindo a gramática e informaçõe­s seguindo associaçõe­s encontrada­s no banco de dados. Palmas para ele: a gente leva ao menos uns dez anos aprendendo a fazer isso, e os engenheiro­s da OpenAI entenderam o suficiente do processo para repeti-lo sob encomenda.

O que o ChatGPT não faz é gerar CONHECIMEN­TO —digo isso assim mesmo, em letras garrafais. Informação existe em associaçõe­s de ideias e eventos: interrupto­r para cima, luz acesa; para baixo, luz apagada. Isso é o que o algoritmo é programado para fazer, e, seguindo as regras do jogo, produz frases gramática e sintaticam­ente corretas.

Agora, conhecimen­to... este dá trabalho e só se constrói às custas de USAR informaçõe­s — assim, em letras maiúsculas. É preciso interagir com o interrupto­r para descobrir que é a sua ação de movê-lo para cima e para baixo que controla a luz e então assimilar essa causa-consequênc­ia no seu kit de ferramenta­s: ela estará lá quando encontrar um quarto escuro e é ela que vai fazer você tatear à procura de algo que traga claridade.

Quem delega seu dever de casa ao ChatGPT abre mão dessa oportunida­de de gerar conhecimen­to em seu próprio cérebro. Esse cérebro cede à preguiça, uma pena.

Mas não há que ser assim. Professore­s, os piores inimigos da preguiça mental, podem incorporar a preguiça ao processo: basta por exemplo pedir aos alunos para fazer, sim, seu dever de casa apelando para o ChatGPT —mas então EDITAR (de novo, maiúsculas) o resultado, usando seu conhecimen­to e seus valores (outra coisa que o algoritmo não tem, mas aí já é outra coluna). Aluno, mostre que você é mais do que um simples algoritmo.

A única razão de banirem livros até hoje foi por nos fazerem pensar, não por nos impedirem. Se um dia o ChatGPT de fato incomodar, vai ser porque insuflou mentes a pensar coisas novas, não a se acomodar.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil