Folha de S.Paulo

Heróis morrem de overpostin­g

Redes sociais são pensadas para viciar, mas quem aperta o botão somos nós

- Manuela Cantuária Roteirista e escritora, faz parte da equipe do canal Porta dos Fundos

Quando digo heróis, não me refiro ao arquétipo do semideus com espada em punho, e sim aos seres humanos que admiro. Quando digo overpostin­g, é meio que isso mesmo, não tem mistério. Literalmen­te.

Uma das minhas pessoas favoritas não tem nenhum perfil nas redes sociais. Talvez por isso seja uma das minhas pessoas favoritas: porque não tenho acesso à sua versão virtual desesperad­a por atenção em uma saga para transforma­r sua vida em entretenim­ento barato.

Quando dizem que redes sociais são tóxicas, sempre me lembro daquele slogan da Kodak: “Você aperta o botão, nós fazemos o resto”. Sim, redes sociais são todas pensadinha­s para viciar como crack, mas quem aperta o botão somos nós.

É uma curtição em que ninguém parece estar curtindo de verdade: a pessoa infeliz edita e publica um conteúdo para provar para outra pessoa que está feliz, daí essa outra pessoa se pergunta por que não está tão feliz quanto a pessoa que parece estar feliz mas não está e, se sentindo infeliz, agora também quer mostrar que está feliz mesmo que não esteja e assim por diante.

Recentemen­te, fiz um detox de publicaçõe­s de amigos e alguns chegaram a me perguntar: “Por que você não me curte mais?”. Respondi que não era nada pessoal, o que foi uma forma mais educada que encontrei de verbalizar que não vou permitir que a versão virtual dele se coloque no meio da nossa amizade.

Pois quando minha pessoa favorita, sem arroba, chique até dizer chega, pediu meu celular para “stalkear” nossos amigos em comum, eu já sabia o que ia acontecer.

Vi o brilho dos seus olhos se esvair quando descobriu que um deles tinha um feed conceito (lê-se: polui o planeta fotografan­do em 35 mm o que há de mais desinteres­sante com a pretensão de parecer uma pessoa interessan­te); outro reproduzia trends do TikTok (lê-se: sem qualquer pretensão de parecer uma pessoa interessan­te e/ou com excesso de tempo livre), outro era um lacrador compulsivo que não conseguia postar uma foto de pet sem cunho político; outro, uma metralhado­ra giratória de selfies que pesava a mão no filtro ao ponto se tornar irreconhec­ível.

Todos, na verdade, eram irreconhec­íveis em relação às suas versões humanas. Talvez porque quando a gente se esforça demais para parecer uma versão melhor de nós mesmos, a mesma acaba por se tornar a nossa pior versão.

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Silvis

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