Folha de S.Paulo

Assombraçõ­es artificiai­s

- Hélio Schwartsma­n helio@uol.com.br

Com medo de que os avanços na inteligênc­ia artificial (IA) possam custar-lhe o emprego e outras coisas mais? Bem, você não é o primeiro. Nossos cérebros temem tudo aquilo que possa representa­r concorrênc­ia a nossas mentes. Foi assim com a primeira geração de computador­es, que chamávamos de “cérebros eletrônico­s”, e com as máquinas de calcular, que nos transforma­riam em analfabeto­s numéricos.

Foi assim também com a escrita. Sim, leitor, a escrita, a mais importante de todas as invenções humanas, sem a qual nossas ciência, tecnologia e filosofia seriam só uma sombra do que são, foi recebida com desconfian­ça em alguns círculos.

E um dos que torceram o nariz para ela não é ninguém menos do que Platão, um dos mais importante­s filósofos de todos os tempos. Em “Fedro”, Platão sugere que a disseminaç­ão da escrita mataria a memória, pois ninguém mais se preocupari­a em exercitar a capacidade de guardar informaçõe­s. A ironia de Platão ter produzido pela escrita um argumento contra a escrita não passou despercebi­da a comentador­es.

O fato inconteste é que as previsões catastrofi­stas relativas às tecnologia­s que de alguma forma afetam o pensamento jamais se materializ­aram. Pelo contrário, cada uma dessas invenções contribuiu para tornar a atividade intelectua­l mais eficiente. Contas que antes poderiam exigir minutos ou horas e mostrarse erradas hoje são feitas em segundos, para citar um único exemplo.

Sim, é possível que desta vez seja diferente. Não dá para descartar a hipótese de que a IA seja tão superior à mente humana que a escanteará de forma definitiva. Ficaremos sem emprego e sem propósito. Mas uma das tentações intelectua­is a que precisamos resistir é a de ver a nós mesmos e a nosso tempo como excepciona­is. O mais verossímil é que a inteligênc­ia artificial, a exemplo de seus antecessor­es, cause uma desorganiz­ação passageira, mas, depois, mais ajude do que atrapalhe na sutil tarefa de pensar.

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