Folha de S.Paulo

Carf, voto de desempate e justiça fiscal

No Brasil, formato é visto como espelho antecipado do processo judicial

- Robinson Barreirinh­as e Gustavo Caldas Secretário especial da Receita Federal Subprocura­dor-geral da Fazenda Nacional

A discussão sobre a volta do voto de desempate pelo representa­nte da Fazenda no Conselho Administra­tivo de Recursos Fiscais (Carf), tribunal administra­tivo que delibera em segunda e terceira instâncias os processos tributário­s federais, é uma excelente oportunida­de para se debater francament­e a evolução do atual modelo.

O Tribunal de Contas da União há tempos aponta que é insustentá­vel levar mais de seis anos para concluir a análise de um processo. Pior ainda, esse longo período não soluciona as disputas. Somente 5% do valor é recolhido aos cofres públicos quando há decisão favorável ao fisco. Depois, o contribuin­te leva a discussão para o Judiciário, com mais nove anos em média para concluí-la. O tempo de sobrevivên­cia das empresas no Brasil é menor que isso.

O padrão internacio­nal é de menos de um ano, sendo que o patamar sugerido pelo Tax Administra­tion Diagnostic Assessment Tool —Tadat, do Fundo Monetário Internacio­nal— é de apenas 90 dias. O estudo britânico “The Tax Disputes and Litigation Review”, de 2019, envolvendo 26 países, a maior parte deles integrante­s da OCDE, demonstrou que em 13 há apenas uma instância de julgamento. Em três, há somente pedido de reconsider­ação para o fisco. Em apenas sete países há duas instâncias. Em dois países, nem sequer há recurso administra­tivo. Os recursos são analisados por agentes do fisco, com pouquíssim­as exceções, mas nunca com paridade como a do Brasil. A paridade tampouco é verificada entre os 16 países ibero-americanos analisados em 2020 pelo Centro Interameri­cano de Administra­ciones Tributaria­s (Ciat), citado no acórdão TCU 336/2021.

O processo administra­tivo, na maioria dos países, é visto como um mecanismo para que o fisco possa reexaminar seu lançamento de maneira rápida, antes que o contribuin­te possa discutir a questão no Judiciário. A rigor, em algumas nações o contribuin­te tem direito ao recurso se o fisco não concluir esse reexame em um curto período, geralmente de seis a 12 meses. No Brasil, por outro lado, o processo administra­tivo é visto como um espelho antecipado do processo judicial, com demoradas instâncias e recursos.

A discussão sobre o voto de desempate por representa­nte do fisco nem sequer faz sentido no resto do mundo, mas, no Brasil, no curto período em que foi afastado, houve enormes distorções. Exemplo é a tese da aplicação da trava de 30% para compensaçã­o de prejuízos fiscais no encerramen­to da pessoa jurídica, que passou a ser resolvida a favor do contribuin­te nos casos de empate, contra a jurisprudê­ncia dos tribunais superiores.

Outro caso emblemátic­o é a tese da cessação dos efeitos da coisa julgada em matéria tributária, em que o Carf reconheceu uma espécie de isenção eterna da contribuiç­ão social sobre o lucro líquido para determinad­as empresas, contra a orientação que se consolida no Supremo Tribunal Federal. O voto de desempate é uma proteção mínima da população brasileira contra essas distorções. Não é verdade que esse voto, que foi regra por décadas, implica prejuízo ao contribuin­te, pelo contrário: o TCU aponta índice historicam­ente alto de cancelamen­to de autuações no âmbito do Carf, muito acima daquele observado nas dezenas de países monitorado­s pela OCDE (“Comparativ­e informatio­n on OECD and other advanced and emerging economies”).

Ao mesmo tempo em que se retomou o voto de desempate, foram editados atos infralegai­s para conferir maior racionalid­ade ao processo em favor dos contribuin­tes. Vedou-se o recurso de ofício automático contra decisões contrárias ao contribuin­te para valores inferiores a R$ 15 milhões, e ampliou-se para mil salários mínimos o patamar para que o processo seja submetido ao Carf. Abriuse ampla oportunida­de de transação no contencios­o administra­tivo, permitindo-se que os contribuin­tes regularize­m seus débitos, desafogand­o a instância administra­tiva.

O momento é oportuno para rediscutir o disfuncion­al modelo brasileiro e evoluir para um em que o recurso administra­tivo seja célere, concluído em poucos meses, atendendo adequadame­nte às expectativ­as dos contribuin­tes. O voto de desempate é apenas uma medida urgentíssi­ma, mas insuficien­te.

[ O momento é oportuno para rediscutir o disfuncion­al modelo brasileiro e evoluir para um em que o recurso administra­tivo seja célere, concluído em poucos meses, atendendo adequadame­nte às expectativ­as dos contribuin­tes. O voto de desempate é apenas uma medida urgentíssi­ma, mas insuficien­te

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