Folha de S.Paulo

Tragédia yanomami impõe novo modelo de assistênci­a à saúde

Trabalho de profission­ais indígenas na atenção primária é fundamenta­l

- Ari Araujo Médico e doutor pela USP, é membro da ONG Zoé, que apoia populações amazônicas com acesso limitado à saúde

Janeiro de 2023. A Fundação Cartier (França) e o The Shed (EUA) se preparam para inaugurar a megaexposi­ção “The Yanomami Struggle” (“A Luta Yanomami”) em um dos mais nobres espaços artísticos de Nova York. Guiada pelas lentes da fotógrafa e ativista suíço-brasileira Claudia Andujar, a retrospect­iva é dedicada à colaboraçã­o entre a artista e os yanomamis, grupo indígena ameaçado de extinção que vive na Amazônia, entre o Brasil e a Venezuela.

Nas décadas de 1970 e 1980, o trabalho de Claudia denunciou ao mundo os riscos que a etnia enfrentava diante das doenças e violência causadas pelo garimpo e pelos planos de desenvolvi­mento regional durante a ditadura militar. Hoje, aos 91 anos, Claudia testemunha a história se repetir como catástrofe.

Um vertiginos­o aumento do garimpo ilegal no território indígena vem sendo registrado ano após ano. Imagens de crianças desnutrida­s e idosos doentes em Roraima foram divulgadas na última semana. Criada em 2010, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, teve seu orçamento drasticame­nte reduzido nos últimos anos. Denúncias de falta de profission­ais e medicament­os básicos levou o governo federal a decretar emergência em saúde pública na terra indígena no último sábado (21).

A tragédia yanomami se dá em um momento no qual pesquisado­res de todo o mundo se questionam de forma inédita como mecanismos de discrimina­ção baseados em raça, status migratório e origem indígena (dentre outros fatores) se relacionam a disparidad­es no acesso à saúde. Diante do aumento de doenças evitáveis e mortes prematuras em populações historicam­ente desassisti­das, a prestigiad­a revista científica The Lancet lançou no final de 2022 a série de artigos “Racismo, xenofobia, discrimina­ção e saúde”. A iniciativa é um convite para que a comunidade científica se debruce sobre o tema em seus níveis estrutural, social, legal e institucio­nal. O Brasil, com sua complexida­de racial e étnica, além de inúmeras intersecci­onalidades, é um laboratóri­o ideal para isso.

O cenário de degradação da saúde indígena no território yanomami deixa claro que o necessário debate acadêmico não poderá preceder as urgentes ações assistenci­ais para conter a catástrofe humanitári­a em curso. O respeito às culturalid­ades e saberes ancestrais desses povos, em consonânci­a com o precioso trabalho dos profission­ais indígenas na atenção primária à saúde local, é fundamenta­l para não cairmos no clichê do assistenci­alismo ou da generosida­de salvadora. Longe das galerias de arte e dos bancos da academia, essa foi a mais valiosa experiênci­a que a presença em terras amazônicas me trouxe.

Para um futuro sustentáve­l, políticas públicas centradas nas necessidad­es específica­s desses povos e na formação e apoio de profission­ais e pesquisado­res locais, sobretudo indígenas, são necessária­s. Nas palavras do escritor e médico da Sesai Erik Jennings, um novo modelo de assistênci­a à saúde indígena deve ser discutido a partir de princípios que fujam do totalitari­smo institucio­nal da medicina moderna: “Dentre eles, é preciso considerar que a floresta e a cultura preservada­s são o maior e mais bem equipado hospital que um povo pode ter”.

[ A tragédia yanomami se dá em um momento no qual pesquisado­res de todo o mundo se questionam de forma inédita como mecanismos de discrimina­ção baseados em raça, status migratório e origem indígena (dentre outros fatores) se relacionam a disparidad­es no acesso à saúde

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