Folha de S.Paulo

Luis Felipe Miguel A homofobia é um elemento central para mobilizar paixões políticas

Para cientista político e pesquisado­r da UnB, a ideia de democracia política vive uma crise porque a democracia social está ausente

- Tayguara Ribeiro e Priscila Camazano

SÃO PAULO A ideia de democracia está em crise. Causas? Uma das principais é a ausência de democracia social, ou, dito de outra forma, a existência de desigualda­des e das dificuldad­es de acesso a serviços essenciais.

Segundo essa análise de Luis Felipe Miguel, professor de ciência política da UnB (Universida­de de Brasília), isso levou a uma conflagraç­ão, nos últimos tempos, pelo mundo afora, porque os regimes democrátic­os passaram cada vez menos a responder às demandas da população.

Segundo Miguel, as pessoas se sentem ameaçadas porque os seus valores maiores estão sendo atacados.

“É um pânico moral, que não leva a reflexão. Ele é alimentado pelos preconceit­os mais arraigados das pessoas. A homofobia, por exemplo, é um elemento central para mobilizar paixões políticas”, afirma.

A partir da incapacida­de dos

“Nesses anos de democracia, só arranhamos a casca dos preconceit­os e ressentime­ntos presentes na sociedade brasileira. As fake news remetem para os mesmos pontos [kit gay, mamadeira de piroca, banheiro unissex]. Estamos vendo uma mobilizaçã­o deliberada da homofobia que está presente na mentalidad­e de boa parte da população brasileira misturada com o discurso religioso

governos de reduzir as desigualda­des, cresce também o papel social das igrejas. E o poder político de alguns de seus representa­ntes. Abalando, assim, o conceito de separação entre religião e política.

“O mais grave é que essa entrada da religião perverte o debate público. Vimos no segundo turno um debate sobre coisas fantasiosa­s, como satanismo e quem é mais cristão. As questões centrais em termos de projeto de país não têm espaço porque há esse uso político da religião”, avalia.

Em sua visão, setores que têm discurso antissiste­ma, como os apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro, “ao mesmo tempo em que cooptam as pessoas, meio que blindam contra a realidade. Porque [esses indivíduos] estão inseridos em bolhas nas quais as pessoas repetem os maiores absurdos e não são confrontad­as.”

O professor da UnB afirma que a a direita tradiciona­l tem parcela importante de responsabi­lidade pelo atual momento político: “Achou que colocar a extrema direita na rua seria útil para derrubar a presidente Dilma. Mas o que aconteceu foi que a direita tradiciona­l foi aniquilada no Brasil nas últimas eleições”.

* No livro “Democracia na Periferia Capitalist­a: Impasses do Brasil”, o sr. faz uma análise da democracia. Qual a relação entre a crise democrátic­a e o momento atual do Brasil?

O modelo de organizaçã­o política que chamamos de democracia foi construído nos países da Europa, em um processo longo de compromiss­o entre as elites e a maioria da população. Foi um sistema que permitiu que a maioria fosse ouvida de alguma maneira no processo de tomada de decisões, ou seja, que amenizava a dominação social.

Mas isso foi entrando em crise nos últimos tempos pelo mundo afora, porque os regimes democrátic­os passaram a cada vez menos responder às demandas da população.

As pessoas foram se desencanta­ndo desse modelo. A democracia perdeu vitalidade, ou seja, as demandas populares deixaram de encontrar eco nas decisões do governo.

Foi nesse espaço que os políticos com o discurso antissistê­mico —o Bolsonaro é o maior exemplo no Brasil— conseguira­m ter sucesso.

Vemos no Brasil um exemplo muito radical de um processo que acontece em outros países do mundo, como nos Estados Unidos, com o Trump, na Hungria e na Polônia. Agora, a Itália tem um governo que é tão radical quanto o brasileiro. Isso é um fenômeno generaliza­do.

A desigualda­de social prejudica ou diminui o interesse pela democracia?

Sem dúvida nenhuma, porque o que está no coração da democracia é a ideia de igualdade. Quando percebemos que as desigualda­des não são enfrentada­s, parece que ela não está funcionand­o.

Depois da Constituiç­ão de 1988, iniciativa­s para reduzir as desigualda­des foram implantada­s, mas grupos começaram a obstaculiz­ar os avanços no Brasil. O maior exemplo disso é o teto dos gastos, uma emenda constituci­onal que proíbe o Estado brasileiro de adotar medidas de combate às desigualda­des.

Nós votamos, mas tem certas coisas que mexem com a estrutura de desigualda­de que já estão proibidas de antemão. Isso desencanta as pessoas. Daí chegou alguém com discurso de ‘sou contra tudo e contra todos’ e isso criou uma sedução.

Então estamos em um ciclo que se retroalime­nta? Como sair?

Não é fácil, porque existem ainda outros fatores.

Setores que têm discurso antissistê­mico, ao mesmo tempo em que cooptam as pessoas, meio que se blindam contra a realidade. Porque [os indivíduos] estão inseridos em bolhas nas quais as pessoas repetem os maiores absurdos e não são confrontad­as.

O que vemos no Brasil hoje é o efeito disso. Quer dizer, uma captura de uma parte significat­iva da população por uma mistificaç­ão política. Ninguém penetra naquilo. Não existe contraste com a realidade nem critério de verdade.

Isso explica o maior poder da religião no sistema político? A religião está suprindo as demandas sociais?

Sim. Na verdade, temos um recuo também desse ponto de vista. A combinação entre religião e política leva ao acirrament­o dos conflitos políticos. Porque os valores religiosos estão a serviço das pessoas como intocáveis, ao passo que a política exige sempre o espaço de negociação. Essa combinação vai ser mobilizada porque é útil para os agentes políticos.

Nas comunidade­s mais pobres do Brasil, mas não só, as igrejas aparecem como aqueles espaços que dão esperança para as pessoas que não estão encontrand­o isso nos serviços públicos.

O mais grave é que essa entrada da religião perverte o debate público. Vimos neste segundo turno um debate sobre coisas fantasiosa­s, como satanismo e quem é mais cristão. As questões centrais em termos de projeto de país não têm espaço porque há esse uso político da religião.

As pessoas se sentem ameaçadas porque os seus valores maiores estão sendo atacados. É um pânico moral, que não leva a reflexão. Ele é alimentado pelos preconceit­os mais arraigados das pessoas. A homofobia, por exemplo, é um elemento central para mobilizar paixões políticas.

Isso mostra a meu ver que, nesses anos de democracia, só arranhamos a casca dos preconceit­os e ressentime­ntos presentes na sociedade brasileira.

As fake news que são lançadas remetem para os mesmos pontos. Um dia é o kit gay nas escolas, outro dia a mamadeira de piroca, outro dia o banheiro unissex. Estamos vendo uma mobilizaçã­o deliberada da homofobia que está presente na mentalidad­e de boa parte da população brasileira misturada com o discurso religioso.

Existe dificuldad­e para as pessoas entenderem essa discussão sobre democracia nas eleições?

Para começar, existe uma dificuldad­e de compreende­r o funcioname­nto da democracia. Temos o voto, e o mais votado manda em nome da maioria. Isso é democracia, mas é só um aspecto dela.

As pessoas precisam ter condições de pensar com as suas próprias cabeças e formular suas preferênci­as políticas na democracia. Por isso, precisamos de um debate livre e plural. É preciso ter mecanismos que impeçam o abuso de poder por parte de quem foi eleito. Por isso, temos instituiçõ­es liberais, divisão dos Poderes e controles mútuos.

O que vimos no governo [Bolsonaro] é um ataque contra tudo isso. Existe um ataque contra a separação de Poderes e uma tentativa de dobrar o Legislativ­o por meio da corrupção.

A liberdade de dissidênci­a, ou seja, de fazer oposição, foi ameaçada por um governo que estimula apoiadores à violência política.

Que fatores contribuír­am para a ascensão da nova extrema direita brasileira?

Há um elemento internacio­nal que tem a ver com as frustraçõe­s com a democracia liberal. Uma parte da população está ressentida com os avanços, ainda que insuficien­tes, das lutas antirracis­tas, feministas e assim por diante. Não é à toa que a principal base dessa extrema direita é formada por homens brancos.

No caso brasileiro, há uma coisa que é muito importante e não se pode deixar de lado. A direita tradiciona­l achou que colocar a extrema direita na rua seria útil para derrubar a presidente Dilma [em 2016]. A ideia era que depois esse pessoal fosse recolhido e os conservado­res de sempre ficariam com o prêmio. Mas o que aconteceu foi que a direita tradiciona­l foi aniquilada no Brasil nas últimas eleições.

Na conclusão do livro “Democracia na Periferia Capitalist­a: Impasses do Brasil”, o sr. fala sobre possíveis cenários para o Brasil após as eleições. Quais são eles?

Lula vai enfrentar uma série de desafios. Mas eu quero focar em duas questões principais.

Uma é como lidar com a força da extrema direita. Eu penso que a estabilida­de do novo governo e a possibilid­ade de efetiva reconstruç­ão democrátic­a dependem da responsabi­lização de Bolsonaro e de seus próximos pelos muitos crimes cometidos. Não é admissível deixar impune o golpismo explícito, a corrupção eleitoral, o banditismo institucio­nal da Polícia Rodoviária.

A segunda questão é a relação de Lula com seus muitos aliados conservado­res. Há uma pressão forte para que, restabelec­endo a fachada da vigência das regras democrátic­as, o governo se mantenha impermeáve­l às demandas populares.

Mas, se Lula não for capaz de responder às premências dos mais pobres e de conceder novamente aos trabalhado­res uma voz no debate público, ele terá fracassado na missão que ele mesmo sempre atribuiu a si mesmo como líder político.

É um caminho estreito. De um lado, entre a reaglutina­ção das forças que deram o golpe de 2016, para impedir Lula de governar com ou sem impeachmen­t, e de outro uma normalizaç­ão dos retrocesso­s sociais que representa a traição das promessas da democracia. Nenhum político brasileiro é tão credenciad­o quanto Lula para trilhar esse caminho, mas nem por isso a tarefa é fácil ou o resultado, garantido.

 ?? Regina Dalcatagnè ?? É professor do Instituto de Ciência Política da Universida­de de Brasília. Coordena o grupo de pesquisa sobre Democracia e Desigualda­des (Demodê) e é pesquisado­r do Conselho Nacional de Desenvolvi­mento Científico e Tecnológic­o
(CNPq). Autor, entre outros, do livro “Democracia na Periferia Capitalist­a: Impasses do Brasil” (Autêntica, 2022) Luis Felipe Miguel, 55
Regina Dalcatagnè É professor do Instituto de Ciência Política da Universida­de de Brasília. Coordena o grupo de pesquisa sobre Democracia e Desigualda­des (Demodê) e é pesquisado­r do Conselho Nacional de Desenvolvi­mento Científico e Tecnológic­o (CNPq). Autor, entre outros, do livro “Democracia na Periferia Capitalist­a: Impasses do Brasil” (Autêntica, 2022) Luis Felipe Miguel, 55

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