Folha de S.Paulo

Uruguai destoa na Celac, critica postura da esquerda e ataca Mercosul

Imbróglio tem como pano de fundo acordos de livre comércio que Montevidéu almeja selar

- Sylvia Colombo

BUENOS AIRES Se Brasil e Argentina chegaram à Cúpula da Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos) em Buenos Aires na tarde desta terça-feira (24) com discursos alinhados sobre a necessidad­e de combater o avanço da ultradirei­ta, ficou com o Uruguai de Luis Lacalle Pou a tarefa de desafinar o coro dos contentes.

A jornalista­s o presidente de centro-direita afirmou que é preciso que nações vizinhas deixem que o país “se abra ao mundo” e disse que essa seria sua principal mensagem ao brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva (PT) —depois de passar pela Argentina, o petista vai ao Uruguai nesta quarta (25).

Lacalle Pou se referia a acordos de livre comércio que Montevidéu negocia com países como China e Nova Zelândia, algo que vem sendo criticado por outros membros do Mercosul. O chanceler brasileiro, Mauro Vieira, afirmou em entrevista à Folha que tirar uma ideia como essas do papel significar­ia a destruição do bloco.

O uruguaio criticou o que chama de protecioni­smo do Mercosul e pediu que líderes da região parem de “reclamar para dentro” e compreenda­m que é preciso avançar na integração global.

Além de recados ao governo brasileiro, sobraram também indiretas ao governo de Alberto Fernández na Argentina. O centro-direitista disse, por exemplo, que “não é necessário ser de esquerda para defender a democracia”, contrarian­do mensagens ecoadas pelo peronista e também por Lula em Buenos Aires.

Na cúpula, Lacalle Pou ainda afirmou que nem todos na mesa —que incluía o líder da ditadura cubana, Miguel Díaz-Canel— respeitava­m os valores democrátic­os e que era perigoso fazer da Celac um clube ideológico.

“A declaração da Celac fala de respeito à democracia, aos direitos humanos e do cuidado às instituiçõ­es, mas claramente existem países aqui que não respeitam nem as instituiçõ­es nem a democracia nem os direitos humanos.”

A referência foi ao comunicado final da reunião, que reforçou a necessidad­e de reforçar a democracia, as instituiçõ­es e os direitos humanos; também expressou preocupaçã­o com o aumento no número de países da região que são vítimas de sanções financeira­s.

O regime cubano, bem como o de Venezuela e Nicarágua, que também integram a comunidade e enviaram representa­ntes à cúpula, são reiteradam­ente acusados de abusos e violações dos direitos humanos, incluindo a perseguiçã­o a opositores e dissidente­s.

Mais tarde, na conversa com os jornalista­s, Lacalle Pou ainda fez referência a um comentário do ministro da Economia argentino, Sergio Massa, de que o Uruguai é um “irmão menor” a quem Brasil e Argentina deveriam “cuidar”. O presidente riu e respondeu apenas com a expressão “Disneylând­ia”, uma maneira de definir a declaração como infantil.

Lacalle Pou diz não ver o Mercosul como obstáculo em relação às tentativas de seu governo de negociar pactos comerciais de maneira independen­te. Além do acordo com a China, ele também apresentou recentemen­te um pedido de ingresso formal no CPTPP (Acordo Abrangente e Progressiv­o de Parceria Transpacíf­ica), formado por 11 países da Ásia e da América, entre os quais Chile e Peru.

Um dos principais nomes contrários a essas negociaçõe­s é Fernandéz. Diferentem­ente de seu antecessor, Maurício Macri, ele defende um bloco mais fechado —os líderes argentino e uruguaio protagoniz­aram um debate acalorado sobre o tópico na última cúpula do Mercosul, em julho passado.

O Brasil teve postura ambivalent­e em relação ao tema durante o governo de Jair Bolsonaro (PL). Mas Lula, em seus mandatos anteriores, foi um ferrenho defensor de um Mercosul integrado, postura que, como demonstrar­am as declaraçõe­s de Mauro Vieira, sustenta-se ainda hoje.

Questionad­o sobre a compatibil­idade do pleito uruguaio em relação às normas do Mercosul, o ministro da Fazenda Fernando Haddad (PT), um dos membros da comitiva de Lula em Buenos Aires, respondeu que “isso veremos amanhã” —em referência à ida a Montevidéu, nesta quarta.

Mais tarde, Celso Amorim, assessor especial do presidente, também falou sobre as expectativ­as para o encontro dos dois líderes. “Nós achamos que o Mercosul deve ser

“Ouvi discursos com os quais concordo totalmente e outros com os quais não concordo em quase nada. [...] Existem países aqui que não respeitam nem as instituiçõ­es nem a democracia

Luis Lacalle pou presidente uruguaio, na Cúpula da Celac

preservado. Dentro da ideia de preservaçã­o, está a questão da Tarifa Externa Comum, e isso não é uma exigência do Brasil ou da Argentina, é o artigo 1º do Tratado de Assunção”.

“Reconhecem­os que os países menores precisam de algum apoio, de alguma forma. O Uruguai é uma economia um pouco mais sofisticad­a, com capacidade na área de serviço. Mas não há por que não comprar produtos industrial­izados do Uruguai ou estimular que o Uruguai participe da cadeia produtiva.”

Às margens da Cúpula da Celac, Lula teve encontros bilaterais com diversos líderes da região, como Díaz-Canel e a primeira-ministra de Barbados, Mia Mottley, política que tem ganhado destaque na região por sua enfática defesa do combate à emergência climática e também pela postura favorável ao adeus dado pela ilha à monarquia britânica.

Segundo Amorim, a conversa com o líder de Havana marcou uma reaproxima­ção com o regime —ele indicou que o Brasil deve voltar a condenar o embargo americano à ilha na ONU, revertendo orientação de Bolsonaro. Com Mottley, falou-se da “possibilid­ade de produção de petróleo pela Petrobras no país”.

Na cúpula em si, o anfitrião Fernández renovou com Lula votos de reaproxima­ção entre os países e também fez recorrente­s menções à política brasileira em seu discurso de abertura, como quando citou os ataques às sedes dos Três Poderes, no último dia 8, para falar sobre a defesa da democracia. Segundo ele, “a loucura invadiu as ruas de Brasília”.

“Vimos como setores de extrema direita ameaçam nossos povos. Não podemos permitir que essa direita fascista coloque em risco a institucio­nalidade”, disse o argentino.

 ?? Agustin Marcarian/Reuters ?? Líderes dos países da Celac posam para foto oficial da cúpula em Buenos Aires, com Lula e Fernández em destaque (à dir.); Lacalle Pou ficou no canto (fora da imagem)
Agustin Marcarian/Reuters Líderes dos países da Celac posam para foto oficial da cúpula em Buenos Aires, com Lula e Fernández em destaque (à dir.); Lacalle Pou ficou no canto (fora da imagem)

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