Folha de S.Paulo

Censo vive tragédia absoluta, e dados não são confiáveis

Ex-presidente do IBGE defende auditoria na pesquisa, pede que responsáve­is sejam investigad­os e levanta possibilid­ade de país ter desperdiça­do R$ 2,3 bi

- Idiana Tomazelli

brasília A publicação dos dados preliminar­es do Censo Demográfic­o 2022 expõe a “tragédia absoluta” que se abateu sobre a pesquisa, avalia o expresiden­te do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatístic­a) Roberto Olinto.

Em entrevista à Folha, ele defende a realização de uma ampla auditoria dos dados para verificar se eles são válidos, se é preciso realizar um trabalho adicional ou, em caso extremo, se é o caso de elaborar um novo Censo.

“Por que tem que auditar? Porque esses dados não são confiáveis. Teve todos esses problemas, e uma coleta de seis meses é tudo que a demografia reclama. Não pode ser assim”, diz.

Segundo reportagem publicada pela Folha nesta terça (24), dados preliminar­es do Censo mostram população menor que a esperada em 863 municípios, o que os fez perder recursos do FPM (Fundo de Participaç­ão dos Municípios) e deu início a batalha judicial.

Hoje pesquisado­r associado do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), Olinto presidiu o IBGE entre junho de 2017 e dezembro de 2018. Antes, foi diretor de pesquisas do órgão e coordenado­r da área de contas nacionais, responsáve­l pelo cálculo do PIB (Produto Interno Bruto) do país.

Especialis­ta com experiênci­a internacio­nal na área de estatístic­a, ele critica decisões tomadas pela direção que o sucedeu no IBGE e defende uma investigaç­ão para responsabi­lizar eventuais culpados pelas falhas na realização do Censo. “Quando você faz um Censo e decide que não vai fazer propaganda [para a população colaborar], isso vai contra uma regra. Isso foi doloso, não foi doloso?”, questiona.

O IBGE diz em nota que as contestaçõ­es não procedem. Segundo o órgão, a metodologi­a da estimativa apresentad­a foi aprovada pelo conselho consultivo do Censo, formado por economista­s, demógrafos e estatístic­os como representa­ntes da sociedade civil.

Segundo o IBGE, o resultado divulgado até agora representa um esforço “para entregar os dados populacion­ais devidament­e atualizado­s dentro da melhor técnica estatístic­a disponível com maior precisão e confiabili­dade”.

* Quais são os problemas do

Censo? Vou tentar fazer uma linha do tempo. Quando saí da presidênci­a, Susana Cordeiro Guerra assumiu o cargo, vindo dos EUA, depois de 20 anos fora do Brasil e sem jamais ter trabalhado na área de estatístic­a ou gestão de qualquer coisa.

Começou, de forma extremamen­te prepotente, a mexer em todo o projeto. Reduziu o questionár­io, interferin­do num projeto discutido com a sociedade civil. Diminuiu o orçamento, de R$ 3,4 bilhões para R$ 2,3 bilhões, sem nem tentar manter o que estava previsto. Exonerou o diretor de pesquisas e o diretor de informátic­a. Um projeto que já vinha sendo trabalhado havia cinco anos tem uma intervençã­o não só técnica mas com a exoneração de pessoas muito envolvidas e experiente­s.

Veio a Covid, depois cortam [de novo] o orçamento, Susana pede demissão. Teve todo um período aí meio complicado. Pelo menos o IBGE teria dois anos para se organizar.

[Procurada pela Folha para comentar as declaraçõe­s de Olinto, Guerra disse que não iria se pronunciar sobre o assunto]

O IBGE sabia desde o início que ia ter uma folha de 250 mil pessoas. Tinha de preparar o sistema. Sai o Censo em 2022, começam a vir os comentário­s dos recenseado­res. Cinco dias de treinament­o, apenas. Atraso no pagamento, erros no valor. Você começa a observar os recenseado­res pedindo demissão, irritados, abandonand­o o trabalho.

Eu sinto vergonha disso. O Censo é para ser levantado em dois meses [a coleta começou em 1º de agosto de 2022], e nós estamos no meio de janeiro e não terminou. Tem só metade dos recenseado­res. O IBGE pedindo para a Prefeitura do Rio de Janeiro botar agente municipal de saúde para coletar Censo. O cara não foi treinado, ele não sabe o que está fazendo. Tragédia absoluta.

Saem os resultados preliminar­es. Coisas absolutame­nte inexplicáv­eis. No Rio, os municípios da região metropolit­ana, todos caíram de população em relação a 2010. No Rio Grande do Sul, um número enorme de municípios judicializ­ou, porque não sabe se o Censo está certo ou errado. Eu acho que está errado.

Por quê? Eles imputaram dados para quase 20% da população. Imputar dado é você dizer: eu não tenho dados para 20% da população e vou usar um processo que normalment­e se usa para 2%. Nenhum Censo cobre 100% da população, mas você tem uma alta cobertura. E tem problemas em algumas variáveis. Renda, população, idade. Não é uma coisa do tipo “eu não tenho informação de metade do município”. E o que estão fazendo? Estão imputando questionár­ios inteiros.

Usualmente cerca de 2% das informaçõe­s do Censo são imputadas? Mais ou menos isso. É o que foi feito em 2010. Por que tem que auditar? Porque esses dados [do Censo 2022] não são confiáveis. Houve todos esses problemas, e uma coleta de seis meses é tudo que a demografia reclama. Não pode ser assim [com tanta demora].

Para ter o Censo confiável, tem que auditar. É tanto problema pregresso que tem que parar, respirar e dizer o seguinte: vamos avaliar. Uma comissão independen­te, obviamente com pessoas do IBGE e de fora, para dizer o seguinte: esses dados da população brasileira e suas variáveis são válidos e respeitáve­is. Ou dizer: não são válidos, existem problemas e temos que discutir uma solução para isso. Pergunta: jogamos R$ 2,3 bilhões no lixo ou não?

Como seria esse trabalho de

análise dos dados? É um longo trabalho. Primeiro, de coerência estatístic­a, comparando com o passado e cruzando com outras informaçõe­s, inclusive voltando a coleta em alguns municípios para entender o que aconteceu. Se o Censo tivesse sido feito com todos os padrões de qualidade, o IBGE poderia dizer “acabou, é esse o dado, ponto final”. Mas foi feito cheio de erros e gerando desconfian­ça.

Eu não acho que ele está certo. Todos os indícios são que ele tem que ser revisto. Essa auditoria teria que dizer o que vai fazer no futuro. Vai fazer uma coleta em 2025 [ano previsto para a nova contagem populacion­al]? Vai ter que ampliar isso? Até no extremo tem que pensar: vai ter que fazer um novo Censo?

É o caso de fazer um novo Censo? Essa auditoria responderi­a a isso. Tem três caminhos. A auditoria vai dizer que está bom —duvido. A auditoria vai dizer: “Há partes que são aproveitáv­eis, mas temos que corrigir assim, assim, assado”. E há a terceira alternativ­a: o Censo está uma porcaria, vamos refazê-lo. Não dá para tratar o Censo como se fosse uma brincadeir­a. É fundamenta­l para a história do Brasil.

Já estamos três anos atrasados. Pelo que o sr. está falando, há uma série de inconsistê­ncias que levam ao risco real de precisar de um novo Censo. Já não seria o caso de tomar uma decisão rapidament­e em relação a isso? Aí entra numa questão de governo, Orçamento, e você ainda não tem a dimensão do que precisaria para fazer o novo Censo. Poderia raciocinar da seguinte forma: estamos numa catástrofe estatístic­a e vamos colocar no Orçamento verba para fazer um novo Censo. Se não for preciso, economiza dinheiro. Se for preciso, a gente faz um novo Censo. Mas, para isso, observe um dado: a ministra Simone [Tebet] ainda não escolheu um presidente do IBGE.

Como deve ser a preparação

de um Censo? Um censo demográfic­o tem como base um excelente treinament­o dos recenseado­res. Eles têm que ser desde especialis­tas no que está no questionár­io até no que as pessoas não estão falando. Como eles vão lidar com a negativa ou com o assédio de um informante? Eles têm que saber lidar com isso, e não foi feito. E, chave, isso é fundamenta­l: muita propaganda, muito esclarecim­ento da população para colaborar. Não foi feito nada. Nada! Usaram Instagram e Facebook.

No Censo de 2010, você tinha recenseado­r na novela das nove. Você colocava faixa em campo de futebol. Isso é o bê-á-bá de um Censo. Se não esclarecer a população, não consegue resposta. Por que isso não foi feito? Por que não teve publicidad­e? Por que atrasou operaciona­lmente seis meses a coleta? Foi tudo desorganiz­ado. Tem indícios de que houve decisões da direção erradas e que talvez mereçam uma investigaç­ão.

Para eventual responsabi­lização? Exato. Uma responsabi­lização. Acho que o Tribunal de Contas vai ter que avaliar esse negócio todo. Não pagaram ao recenseado­r, onde é que está esse dinheiro?

Há uma necessidad­e de avaliação das decisões tomadas pela direção do IBGE. [É preciso verificar] se esse processo de quatro anos teve decisões corretas ou decisões que merecem uma advertênci­a, uma punição. Não estou nem falando em crime, mas de processo administra­tivo. Quando você faz um Censo e decide que não vai fazer propaganda, isso vai contra uma regra. Isso foi doloso, não foi doloso?

O IBGE adiou a divulgação da Pnad Contínua, que traz dados sobre emprego e renda, sob a justificat­iva de concentrar esforços no Censo. Qual é

a consequênc­ia disso? Nunca se tinha atrasado uma pesquisa conjuntura­l. Isso foi contra tudo. Arrebenta o Censo Demográfic­o e, não satisfeito, arrebenta a Pnad também. Por que tinha que afetar a Pnad?

O grande dano é que começa a afetar a credibilid­ade da pesquisa. Os padrões de estatístic­as são muito claros. As pesquisas conjuntura­is devem respeitar exatamente o seu cronograma. O problema vazar para uma pesquisa fundamenta­l, que é a pesquisa de emprego, eu acho inaceitáve­l. Assuma o seu problema no Censo e proteja as outras pesquisas.

Não que vá ter problema nos resultados da Pnad, mas é a questão da contaminaç­ão e da credibilid­ade. Já existe um mal-estar em relação ao Censo, vai criar um mal-estar em relação à Pnad? Daqui a pouco vai criar um mal-estar em relação aos [índices de] preços? As fronteiras têm de ser muito bem definidas.

Eles imputaram dados para quase 20% da população. Imputar dado é você dizer: eu não tenho dados para 20% da população e vou usar um processo que normalment­e se usa para 2%. Nenhum Censo cobre 100% da população, mas você tem uma alta cobertura. E tem problemas em algumas variáveis. Renda, população, idade. Não é uma coisa do tipo ‘eu não tenho informação de metade do município’. E o que estão fazendo? Estão imputando questionár­ios inteiros

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Divulgação/FGV Ibre

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