Folha de S.Paulo

Amazônia é chave para fortalecer democracia

Enfrentame­nto da crise climática vai gerar ciclo de prosperida­de econômica, lançar a Potência Verde e unir o país

- Luciano Huck Apresentad­or de TV e empresário

Os últimos anos mostraram que a defesa da democracia precisa ser um exercício permanente. Não bastam vitórias táticas.

A polarizaçã­o da população brasileira é um fato. A desavença e o ódio se espalharam. Mas a fratura do nosso eleitorado foi uma construção narrativa, concebida e disparada por gabinetes de Brasília e por células eficientes de desinforma­ção. Essa agenda divisiva interessa somente a grupos políticos. E só eles tiram proveito dela.

Poucos têm o privilégio de viajar tanto pelo país e conversar com tantos brasileiro­s como eu, e eu afirmo com total convicção que não existem 60 milhões de fascistas e desalmados no Brasil, assim como não existem 60 milhões de comunistas e antipatrio­tas no Brasil. Está na hora de chamarmos a atenção para o fato de que os muitos problemas do país ignoram em quem a pessoa votou. A vida real nos une!

Por isso, a prioridade número um dos verdadeiro­s democratas é ajudar o brasileiro a redescobri­r a capacidade de discordar sem agredir, de escutar antes de retrucar, de caminhar na mesma direção apesar de eventuais divergênci­as.

A solução passa, certamente, pelo incentivo à informação de qualidade. A imprensa independen­te precisa ser protegida e prestigiad­a.

A solução passa pela adoção de uma política de diálogo e busca de consensos. Nosso país é heterogêne­o. Mudou muito nos últimos 20 anos —e continua a mudar. Nossos governante­s precisam olhar para a frente (e não para trás) e aceitar o novo.

Tomando palavras da premiê neozelande­sa Jacinda Arden, uma das políticas mundiais que eu mais admiro (e que na semana passada deu um lindo exemplo de desapego ao renunciar ao cargo): o Brasil merece uma liderança “gentil, mas forte; empática, mas decisiva; otimista, mas focada” que respeite e acolha tamanha diversidad­e.

A solução passa, de certo modo, também pela modernizaç­ão de nossos serviços públicos, terrivelme­nte analógicos e distantes de cidadãos cada vez mais digitais. Só para dar um exemplo, hoje temos no Brasil cerca de 170 milhões de usuários ativos do WhatsApp. Cada um abre o aplicativo, em média, 60 vezes por dia.

Mas não nos iludamos: as muitas feridas causadas pelos ataques iliberais em países como o Brasil só serão cicatrizad­as se suas populações viverem um ciclo de prosperida­de econômica, se as pessoas voltarem a acreditar num futuro melhor.

Essa foi a principal mensagem que levei na terça-feira (17) à 53ª edição do Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, que reuniu mais de 2.700 líderes e especialis­tas de 130 países para debater o enfrentame­nto dos desafios globais. Fui convidado a falar no evento sobre a polarizaçã­o que assombra o nosso país e os caminhos para curar tantas feridas.

Fiquei contente em participar de um painel justamente com representa­ntes do Peru e da Colômbia, nossos vizinhos de Amazônia. Explico: eu fortemente penso que o enfrentame­nto da crise climática será estratégic­o para o fortalecim­ento das democracia­s da região. O desenvolvi­mento da bioeconomi­a, a pesquisa de superfoods e de superfuels, a adoção de energias limpas, a recuperaçã­o das matas degradadas, o salto de produtivid­ade da nossa agropecuár­ia… Esse é o melhor roteiro para destravar as maiores potenciali­dades dos nossos países.

Olhando adiante no tempo, me parece improvável que o Brasil consiga fabricar eletrodomé­sticos com mais eficiência do que a China ou produzir chips melhores do que os de Taiwan. Mas nenhuma outra nação conta com os recursos naturais e a vocação agroindust­rial do Brasil. Se estivéssem­os à porta da Fábrica de Chocolates de Willy Wonka, eu diria que já temos em mãos o bilhete dourado para entrar.

Décadas atrás, o Brasil era importador de alimentos. Hoje produz a comida que alimenta 1 bilhão de pessoas por dia no mundo. E pode produzir comida para 3 bilhões sem precisar cortar uma única árvore! O devido lugar para o Brasil ocupar é o da Potência Verde do planeta.

Infelizmen­te, o Brasil e seus vizinhos se desenvolve­ram dando as costas para a Amazônia. As cidades da região estão entre as que mais desmataram; não à toa, muitas delas ostentam os piores índices de desenvolvi­mento humano. E o olhar desatento, senão negligente, do poder público deixou milhões de brasileiro­s em situação de inseguranç­a alimentar —ou fome. Um paradoxo, um vexame.

Chegou o momento de darmos o salto para a economia sustentáve­l. E aqui eu aproveito para partilhar um ponto que sublinhei na minha fala em Davos: não haverá no Brasil e na América do Sul a transforma­ção que todos desejamos se os países mais ricos continuare­m distantes do que acontece nas fronteiras do desmatamen­to e se não ouvirmos com atenção as populações locais. Os povos originário­s, os ribeirinho­s e as comunidade­s urbanas que hoje muitas vezes são obrigadas a tirar seu sustento de atividades ilegais precisam vir em primeiro lugar.

Tenho ido com frequência a várias regiões da Amazônia e posso dar aqui meu testemunho de que o problema do desmatamen­to é não apenas cultural mas sobretudo econômico. É um erro acreditar que uma ofensiva de comunicaçã­o será suficiente para persuadir as pessoas a proteger o meio ambiente. Para as populações que vivem na fronteira do desmatamen­to, a árvore de pé tem de valer mais NO BOLSO DELAS do que a árvore derrubada.

Por isso o apelo que fiz em Davos e reitero aqui: os países mais ricos e as organizaçõ­es internacio­nais devem ser chamados a fazer sua parte e apoiar/financiar/remunerar rapidament­e (e generosame­nte!) iniciativa­s que ajudem a inverter essa lógica econômica na América amazônica. Que os 35 latino-americanos tenhamos sido apenas 5% dos painelista­s na edição de Davos focada na “Cooperação em um Mundo Fragmentad­o” é a prova de que muito precisa evoluir nesse sentido.

Eu me entusiasme­i a voltar a participar do Fórum Econômico Mundial para passar ao mesmo tempo uma mensagem de esperança e um chamado às lideranças ali reunidas: com determinaç­ão e amparo de uma iniciativa global, podemos acelerar a guinada do Brasil para uma Potência Verde. Um país que seja ao mesmo tempo uma referência na preservaçã­o ambiental e uma referência na produção de comida. Que gere e distribua riqueza verde. E, com isso, virar uma inspiração para jovens democracia­s de todo o planeta.

[ Olhando adiante no tempo, me parece improvável que o Brasil consiga fabricar eletrodomé­sticos com mais eficiência do que a China ou produzir chips melhores do que os de Taiwan. Mas nenhuma outra nação conta com os recursos naturais e a vocação agroindust­rial do Brasil

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