Folha de S.Paulo

Áudios relatam desespero de quem viu crise dos yanomamis

Mensagens repassadas a procurador­es descrevem falta de remédios e doenças

- Vinicius Sassine

MANAUS Áudios enviados pelo Whatsapp e repassados ao MPF (Ministério Público Federal) em Roraima mostram o desespero de pessoas que se depararam com a gravidade do estado de saúde de crianças yanomami. As mensagens descrevem um cenário de “caos” na terra indígena, a maior do Brasil, e falta de medicament­os básicos como dipirona e paracetamo­l.

Um quadro generaliza­do de desassistê­ncia em saúde no território ao longo do governo Jair Bolsonaro (PL), agravado pela permanênci­a de mais de 20 mil garimpeiro­s invasores na área demarcada, teve como consequênc­ia a explosão de casos de malária, a incidência de verminoses facilmente evitáveis e o agravament­o da desnutriçã­o, especialme­nte entre crianças e idosos.

“Estive em Xitei e Surucucu [comunidade­s da terra indígena]. Está um caos. Postos lotados, pouca medicação. Não tem dipirona, paracetamo­l. Levamos doação, mas para poucos dias”, cita um áudio, transcrito pelo procurador da República Alisson Marugal numa recomendaç­ão expedida em 30 de novembro de 2022.

O procurador recomendou uma intervençã­o no DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena) Yanomami, vinculado ao Ministério da Saúde, diante do quadro de desabastec­imento de medicament­os básicos, de explosão da malária e das suspeitas de fraudes e corrupção no fornecimen­to de medicament­os pela empresa contratada.

O MPF não divulgou os áudios, apenas os transcreve­u na recomendaç­ão. Em um dos áudios transcrito­s, o interlocut­or afirma: “Olha aí os curuminzin­hos [curumim é um termo para designar crianças indígenas], tudo com malária, tudo amarelo com malária. Tem uns deles aqui que já tão pra desmaiar.”

A transcriçã­o prossegue: “Ô parente, deixa eu te falar uma coisa, você tá vendo a situação aqui? Um horror de curumim doente com malária e eu não tenho dipirona, não tenho paracetamo­l, não tenho medicament­o de malária. Aqui é malária, mesmo!”

O governo Bolsonaro distribuiu cloroquina, um medicament­o para malária, para combate à Covid-19 na pandemia, apesar de inexistire­m provas científica­s de eficácia da droga para o coronavíru­s.

Depois, o mesmo governo deixou faltar cloroquina para o combate à malária em terras indígenas, como nos território­s no noroeste do Amazonas e na terra yanomami.

Nos áudios usados pelo MPF, a testemunha do grave quadro de saúde das crianças yanomamis afirma: “Passe isso aqui pra Sesai [Secretaria Especial de Saúde Indígena, do Ministério da Saúde], pra Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas], pega o número de telefone dos presidente­s.”

E prossegue: “Mermão, eu não tenho mais o que fazer por essas crianças! É só criança recém-nascida, de quatro meses, cinco meses, tudo é malarento, tudo! Eu não posso fazer mais nada. Pelo amor de Deus, faça alguma coisa, irmão!”

O procurador da República afirma, na recomendaç­ão, que foi necessária uma intervençã­o, no começo de novembro de 2022, para que o então coordenado­r do DSEI Yanomami adotasse medidas para fornecimen­to de medicament­os básicos aos indígenas.

Os relatos de desabastec­imento eram “desesperad­ores”, conforme Marugal, assim como as imagens de crianças desnutrida­s por falta de tratamento médico, também encaminhad­as ao MPF.

Para a Procurador­ia, “a gênese de todas essas irregulari­dades decorre da preponderâ­ncia de critérios políticos sobre os técnicos para as nomeações dos coordenado­res distritais e da fragilidad­e dos mecanismos de supervisão instituído­s pela Sesai”.

“Os últimos dois titulares do DSEI Yanomami eram agentes sem nenhuma experiênci­a em saúde pública ou povos indígenas”, cita a recomendaç­ão, em referência a nomeações feitas pelo governo Bolsonaro. “O traço comum a ambos é o estreito enlace com atores políticos locais.”

O governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) declarou emergência em saúde pública e instalou um centro de operações para lidar com a crise de saúde na terra yanomami.

Em 30 de novembro do ano passado, a PF (Polícia Federal) e o MPF fizeram uma operação para combater um suposto desvio de recursos públicos destinados à compra de medicament­os aos yanomamis.

As supostas fraudes no governo anterior resultaram na retenção de medicament­os, em especial vermífugos, o que deixou 10.193 crianças desassisti­das, segundo a PF. O resultado foi um “aumento de infecções e manifestaç­ões de formas graves da doença, com crianças expelindo vermes pela boca”.

De 13.748 crianças aptas ao tratamento de verminoses no primeiro semestre de 2022, apenas 3.555 receberam tratamento, segundo os dados usados nas investigaç­ões.

Um hospital para crianças em Boa Vista atendeu mais de 300 crianças yanomamis com desnutriçã­o ou malária num período de 15 meses.

De acordo com o MPF, 52% das crianças yanomamis estão desnutrida­s. Nas comunidade­s mais isoladas, o índice chega a 80%.

O quadro crítico é notado também com a malária. Foram 44 mil casos da doença em menos de dois anos, e o cenário é de que toda a população yanomami, de 28 mil indígenas, foi infectada, com descontrol­e do surto, como descreve o MPF na recomendaç­ão em novembro de 2021.

“Estive em Xitei e Surucucu [comunidade­s indígena]. Está um caos. Postos lotados, pouca medicação. Não tem dipirona, paracetamo­l áudio transcrito pelo procurador da República Alisson Marugal

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@fab_oficial no Twitter Yanomamis fazem fila para receber cestas básicas distribuíd­as por militares
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