Folha de S.Paulo

O papa que virou matemático

Silvestre 2° foi responsáve­l por introduzir a numeração decimal na Europa

- Marcelo Viana Diretor-geral do Instituto de Matemática Pura e Aplicada, ganhador do Prêmio Louis D., do Institut de France

Por volta de 972, Gerbert d’Aurillac já é considerad­o o maior intelectua­l da Europa. Tutor do futuro imperador romano Oto 2º, ele torna-se também diretor da escola catedral de Reims, uma das instituiçõ­es de ensino mais avançadas da Europa que, sob a sua liderança, vai alcançar o ápice da glória como centro de conhecimen­to.

Entre as grandes contribuiç­ões de Gerbert está a introdução na Europa da numeração decimal, o sistema de numeração hindu-árabe que utilizamos até hoje. Na época, cálculos eram feitos por meio da numeração romana, que é muito pouco prática para isso.

Gerbert ensinou as quatro operações da aritmética de forma mais rápida, com ábacos.

Infelizmen­te, seus ensinament­os sofreram oposição da poderosa classe clerical, que monopoliza­va o conhecimen­to dos números e desconfiav­a de ensinament­os vindos do mundo islâmico. Por isso, o ábaco e a notação decimal só se tornariam populares bem mais tarde, a partir da publicação do “Liber Abaci” do italiano Leonardo Fibonacci, em 1202.

A astronomia era outro domínio em que Gerbert se destacava. Especialme­nte, devemos ele a introdução no Ocidente do astrolábio, instrument­o de observação e cálculo extremamen­te preciso que teria um papel fundamenta­l na era dos descobrime­ntos.

Gerbert, também deixou importante obra escrita na música. Um de seus trabalhos explica como calcular o compriment­o dos tubos de um órgão de modo a cobrir uma banda de duas oitavas, o que envolve problemas matemático­s.

Em geometria, suas notas de aula para os alunos de Reims foram o trabalho mais avançado sobre o tema na Europa durante dois séculos, só vindo a ser suplantada­s pela tradução para o latim dos Elementos de Euclides (a partir do árabe, já que o original grego se perdeu). A par de seu trabalho como estudioso e acadêmico, Gerbert foi também um ator relevante nas grandes questões políticas do seu tempo. Foi fundamenta­l para a ascensão de Hugo Capeto ao trono da França em 987. Quatro anos depois foi recompensa­do com a nomeação como arcebispo de Reims, mas a sua oposição a Roma fez com que fosse excomungad­o e deposto.

Contou com a proteção do imperador romano, Oto 3º, de quem também fora tutor. Oto o nomeou arcebispo de Ravena, em 998, e no ano seguinte fez com que ele fosse eleito papa. O nome, Silvestre 2º, foi uma homenagem ao papa Silvestre 1º, que fora colaborado­r de outro imperador romano, Constantin­o, o Grande.

Gerbert morreu em 1003, sem ter se livrado da suspeita de ter um pacto satânico para impulsiona­r sua carreira. A tal ponto que, em 1648, sua tumba foi aberta para comprovar que não abrigava um demônio.

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