Folha de S.Paulo

Minissérie ‘Todo Dia a Mesma Noite’ recria horror de incêndio na boate Kiss

Produção da Netflix feita a partir de livro de Daniela Arbex recupera a tragédia no Rio Grande do Sul

- Leonardo Sanchez

SÃO PaUlO No rescaldo do incêndio, um grupo de bombeiros entra em cena e se depara com um salão em cinzas, quando uma sinfonia de toques de celular irrompe no silêncio sepulcral. O escuro também se dilui com luzes que se acendem violentame­nte em telas que repetem os termos “pai” e “mãe”.

Numa das primeiras e mais fortes cenas de “Todo Dia a Mesma Noite”, minissérie da Netflix que retorna à boate Kiss, as lentes da câmera pouco mostram. Mesmo assim, captam um horror maior que o de qualquer filme ou série mais explícito ao traduzir, sem sangue ou palavras, o tamanho simbólico da tragédia que atingiu a cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, em 27 de janeiro de 2013.

Às vésperas do aniversári­o de uma década, a obra reconstitu­i, misturando realidade e ficção, o incêndio que matou 242 pessoas na boate que operava com irregulari­dades e que ardeu em chamas devido ao uso de fogos de artifício incompatív­eis com ambientes internos e de uma espuma de isolamento inadequada.

São cinco episódios difíceis de ver, que começam nas horas que antecedera­m aquela fatídica festa e terminam quase agora, com a ainda inacabada busca por justiça dos parentes e amigos das vítimas fatais. Além delas, mais de 600 pessoas ficaram feridas, algumas com sequelas físicas permanente­s.

Reabrir essa ferida ainda muito recente pode parecer danoso, aproveitad­or até, ainda mais em meio à popularida­de galopante do true crime, gênero que faz ficção a partir de crimes reais.

Mas Julia Rezende, diretora que em “Todo Dia a Mesma Noite” se afasta de suas comédias no cinema, como “De Pernas pro Ar 3” e “Depois a Louca Sou Eu”, diz que há uma função social por trás do projeto e que era importante voltar a jogar luz sobre o caso.

“Não queremos que essa história caia no esquecimen­to, então essa série é uma denúncia, uma forma de lembrar que essas famílias que buscam justiça há dez anos seguem sem uma resposta”, diz.

“Fomos cuidadosos na hora de decidir o que e como mostrar, então o som é essencial, bem como o foco da câmera. Quando estamos com um personagem, tudo ao redor fica desfocado, justamente para tornar aquilo tolerável.”

O roteirista Gustavo Lipsztein completa dizendo que era preciso dar nome às 242 vítimas, enquanto o elenco reforça que a direção de uma mulher foi essencial para conferir delicadeza e sensibilid­ade à produção, algo que Leonardo Medeiros, Thelmo Fernandes e Debora Lamm acreditam que talvez não tivesse sido alcançado sob um olhar masculino.

Essa discussão do que mostrar guiou cenas delicadas, como a em que o pai vivido por Fernandes, depois de procurar pela filha em todos os hospitais de Santa Maria, vai ao ginásio para onde os corpos foram encaminhad­os para reconhecim­ento.

Antes da saída para a boate, ele havia presentead­o a filha, Mari, com um tênis cheio de estrelas. É enquanto a câmera percorre os pés estendidos que descobrimo­s, junto ao personagem, que a jovem está entre os mortos.

Além de Fernandes, Lamm e Medeiros, também vivem os pais da tragédia Bianca Byington, Raquel Karro, Paulo Gorgulho e Bel Kowarick. Seus personagen­s são inspirados nas figuras reais que estão à frente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviven­tes da Tragédia de Santa Maria e que, na segunda parte da minissérie, travam uma briga mordaz na Justiça.

Seus filhos em cena foram escolhidos para representa­r os vários perfis que estavam na boate Kiss naquela noite, incluindo diferentes classes sociais, idades, tribos e origens. Entre as vítimas não fatais que o público acompanha há dois estudantes daquela cidade universitá­ria —um rapaz que tem quase todo o corpo queimado e uma moça que perde uma perna.

Elenco, Rezende e Lipsztein, no entanto, não falaram com os personagen­s reais ligados ao incêndio. O trabalho de pesquisa para “Todo Dia a Mesma Noite” já havia sido feito pela jornalista Daniela Arbex, vencedora do Jabuti, o prêmio mais importante da literatura brasileira, que revisitou tragédias em obras como “Holocausto Brasileiro”.

Há seis anos, ela lançou um livro homônimo sobre a boate Kiss pela Intrínseca após um longo trabalho de pesquisa. Agora, atuou como consultora criativa da série. “Não dizer não minimiza o sofrimento dos pais, então eu pergunto —a quem interessa o silenciame­nto dessa história?”, questiona, ao justificar a existência das obras.

É de fato com horror que o público redescobri­rá detalhes que talvez passaram despercebi­dos ou que foram esquecidos ao longo dos últimos dez anos. A espuma usada na boate, um médico explica numa cena, ao queimar exalava cianeto, composto químico também usado nas câmaras de gás nazistas no Holocausto. Alguns diálogos são quase didáticos, como que para elucidar fatos mais obscuros.

“A gente precisa construir esse caso na memória coletiva do Brasil para que o que indignou ao ver a série não aconteça mais”, afirma Arbex.

Ela conta que cenas como aquela em que um morador de Santa Maria ataca uma mãe porque cansou de ver fotos das vítimas na praça da cidade realmente acontecera­m.

Dez anos depois do terceiro maior desastre em casas noturnas de todo o mundo, ninguém está preso, já que o processo vem percorrend­o diferentes tribunais e instâncias devido a tecnicalid­ades e interpreta­ções difusas da lei.

A associação de pais tentou sem sucesso responsabi­lizar políticos e outras autoridade­s públicas. Hoje, eles aguardam o fim do julgamento dos donos da boate —que a deixaram operar acima da capacidade, sem alvará, com extintores de incêndio disfuncion­ais e isolada com espuma imprópria— e dos membros da banda que se apresentav­a —que acenderam equipament­os pirotécnic­os proibidos para uso interno, mais baratos do que os adequados.

Todo Dia a Mesma Noite

Brasil, 2022. Dir.: Julia Rezende. Com: Leonardo Medeiros, Erom Cordeiro e Debora Lamm. 16 anos. Na Netflix

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Guilherme Leporace/Netflix A atriz Gabi Munhoz em cena da minissérie ‘Todo Dia a Mesma Noite’, da Netflix
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