Folha de S.Paulo

Museu do Ipiranga revê mitos da Independên­cia

Nova ala da instituiçã­o reúne obras e peças históricas para debater verdades e mentiras em torno do episódio de 200 anos

- Naief Haddad

sÃo pAULo Uma das maiores duplas caipiras da história da música brasileira, Tonico e Tinoco gravaram o “Hino do Sesquicent­enário”, composição de Miguel Gustavo, em 1972. Com a garganta e a viola, exaltavam os 150 anos do grito do Ipiranga. “Potência de amor e paz/ esse Brasil faz coisas/ que ninguém imagina que faz.” Mais adiante, os irmãos cantavam “na mistura de raças/ na esperança que uniu/ o imenso continente/ nossa gente, Brasil”.

A capa do disco com o hino é um dos 130 itens presentes em “Memórias da Independên­cia”, a primeira exposição temporária do Museu do Ipiranga depois da reabertura. As mostras de longa permanênci­a passaram a ser exibidas ao público em setembro do ano passado, quando a instituiçã­o voltou a funcionar.

Com entrada gratuita e duração de apenas dois meses, a nova exposição foi montada na maior sala do museu, com 900 metros quadrados, tamanho equivalent­e ao de uma quadra esportiva. Fica na área ampliada, o chamado piso jardim, à direita de quem entra na instituiçã­o.

O álbum de Tonico e Tinoco integra um percurso de 200 anos de construçõe­s da memória em torno da Independên­cia. Ou seja, não se trata de uma mostra a respeito da emancipaçã­o do Brasil em relação a Portugal, e sim sobre como o país refletiu acerca daquele fato histórico e, principalm­ente, como o idealizou por meio de pinturas, gravuras, esculturas, fotografia­s, filmes, músicas e outros meios.

O eixo principal começa em 1822, segue para o cinquenten­ário, passa pela marca dos cem anos, lembra o sesquicent­enário até chegar ao quinto módulo, dedicado aos 200 anos, celebrados ou discutidos no ano passado.

“Queremos colocar em questão a ideia de sempre associar a Independên­cia ao museu, ao Ipiranga, a São Paulo. O que aconteceu aqui foi um grito e tão somente. E tchau”, diz, em tom bem-humorado, Paulo César Garcez Marins, que divide a organizaçã­o com Maria Aparecida de Menezes Borrego e Jorge Pimentel Cintra, todos do corpo docente do museu. Há ainda curadores-adjuntos.

“O processo de Independên­cia é complexo e só será concluído em meados de 1823, com a expulsão dos portuguese­s das províncias do que hoje chamamos de Norte e

Nordeste. Justamente por ter sido complexo, esse processo será alvo de uma disputa simbólica entre as capitais [São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador]”, afirma o historiado­r.

Em cada um dos cinco espaços, há a visão oficial, ligada ao pensamento dos líderes políticos da época, e o que Garcez Marins chama de “recepção social desses esforços memoriais”. E, dessa forma, surge um contrapont­o.

Um exemplo é o segundo módulo, dedicado a 1872. Há alguns desenhos preparatór­ios para “Independên­cia ou Morte”, pintura ufanista de Pedro Américo em exibição no salão nobre, três andares acima da nova sala de exposições temporária­s. São grafites sobre papel que, devido à fragilidad­e, raramente são apresentad­os ao público.

Logo ao lado, aparecem caricatura­s mordazes do ítalobrasi­leiro Angelo Agostini, que ridiculari­za nomes como dom Pedro 1º e José Bonifácio.

No módulo voltado ao centenário, um outro tipo de contraste se revela. De um lado, a exposição internacio­nal no Rio, com delegações estrangeir­as e festas que receberam multidões. De outro, o fiasco de São Paulo —o monumento à Independên­cia só foi entregue completo em 1923, assim como o jardim francês e a avenida Dom Pedro, todos no bairro do Ipiranga.

A ditadura militar soube usar os 150 anos de Independên­cia para se promover, recorrendo ao futebol, à música e ao cinema. Sorte do Brasil ter tido O Pasquim, tabloide que zombava da devoção exacerbada dos generais ao nacionalis­mo. O ano de 1972 teria sido ainda mais sinistro sem os personagen­s de Henfil e Jaguar, que ocupam uma das paredes da exposição.

A mostra tem ainda o núcleo “Outras Independên­cias”, que aborda movimentos do século 19 em busca de autonomia para determinad­as regiões, tanto em relação a Lisboa quanto ao Rio. São os casos da Revolução Pernambuca­na, de 1817; da Confederaç­ão do Equador, em 1824, em estados do Nordeste como Pernambuco, Ceará, Paraíba e Piauí; e a Revolução Farroupilh­a, que se estendeu de 1835 a 1845 no Rio Grande do Sul.

É a chance de ver pinturas históricas como “A Execução de Frei Caneca”, de 1924, óleo sobre tela de Murillo la Greca.

Memórias da Independên­cia

Museu do Ipiranga - r. dos Patriotas, 100,museudoipi­ranga. org.br. Livre. Ter. a dom., das 11h às 17h. Até 26 de março. Grátis

 ?? ?? Panorama da baía de Guanabara, pintado pelo artista austríaco viajante Thomas Ender, por volta de 1820, que agora está reproduzid­o no livro ‘Ender e o Brasil: Obra Completa’
Panorama da baía de Guanabara, pintado pelo artista austríaco viajante Thomas Ender, por volta de 1820, que agora está reproduzid­o no livro ‘Ender e o Brasil: Obra Completa’
 ?? Fotos Eduardo Knapp/Folhapress ?? Da esq. à dir., retratos de dom Pedro 1º e José Bonifácio por Benedito Calixto, charge ‘O Pasquim Sesquicent­ão’, de Jaguar, e retrato de dom José Martins, de Niccolla Petrilli
Fotos Eduardo Knapp/Folhapress Da esq. à dir., retratos de dom Pedro 1º e José Bonifácio por Benedito Calixto, charge ‘O Pasquim Sesquicent­ão’, de Jaguar, e retrato de dom José Martins, de Niccolla Petrilli
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