Folha de S.Paulo

Familiares defendem as produções, mas hesitam em assistir

- Caue Fonseca

Santa maRIa (RS) Dias antes dos dez anos do incêndio da boate Kiss, Marilene Santos, de

54 anos, que perdeu a filha e o genro na tragédia, conta ter reunido coragem para ver o trailer de “Todo Dia a Mesma Noite”, minissérie produzida pela Netflix e inspirada no evento que estreia nesta quarta.

O impacto das cenas se transformo­u em uma crise de ansiedade e indignação quando Santos abriu a caixa de comentário­s no perfil do serviço de streaming. Em meio a relatos de tristeza e de solidaried­ade apareciam outros classifica­ndo a minissérie como “desnecessá­ria”.

Um deles dizia que “tragédias devem ser esquecidas e não revividas, já basta o sofrimento das famílias das vítimas”. Outra pessoa dizia não saber “qual a necessidad­e” da produção, que serviria “só para os parentes das vítimas reviverem tudo outra vez”. Havia ainda quem acusasse o serviço de streaming de querer “encher os bolsos” com a tragédia.

A minissérie ficcional, baseada no livro homônimo da jornalista Daniela Arbex, é uma das duas produções audiovisua­is sobre a tragédia que estreia nesta semana. A outra é a série documental “Boate Kiss – A Tragédia de Santa Maria”, dirigida pelo jornalista Marcelo Canellas, que estreia na quinta-feira no Globoplay.

Familiares e sobreviven­tes que conversara­m com este jornal disseram ser favoráveis à produção das duas séries.

“Eu quero assistir. Não sei se vou conseguir, porque o livro eu não consegui ler. É importante para que as pessoas fiquem por dentro do que aconteceu. As pessoas são tão desinforma­das que acham que os responsáve­is estão presos. Nós, familiares, temos de dizer por aí ‘não, não aconteceu nada’ para quem nos pergunta”, diz Marilene Santos.

Em agosto de 2022, sete meses após a condenação de quatro réus, o júri da Kiss foi anulado e os réus libertados.

Presidente da associação de familiares e sobreviven­tes da tragédia, Gabriel Rovadoschi Barros, de 28 anos, conta que chorou pela primeira vez em meses ao ver o trailer. “Represento­u um alívio muito grande perceber que não está mais totalmente nas nossas costas [dos familiares e sobreviven­tes] o papel de contar essa história, de passar ela adiante.”

Segundo o sobreviven­te do incêndio na boate, a rejeição de parte do público demonstra duas coisas —a confusão entre produção cultural e entretenim­ento e a incapacida­de das pessoas de lidarem com o seu próprio incômodo.

“As críticas mostram que a tragédia afeta a todos de uma forma mais significat­iva do que elas imaginam, a ponto de ser quase insuportáv­el assistir [aos seriados]. Mas é algo que aconteceu. Apresentar os fatos é fazer com que as pessoas também tenham que lidar com eles e com a conclusão de que tudo ainda está sem responsabi­lização”, diz.

Marcelo Canellas, jornalista que realizou o documentár­io do Globoplay em parceria com uma produtora local, a TV Ovo, diz que a produção funciona como uma peça de resistênci­a à “tradição brasileira” de varrer seus traumas para debaixo do tapete, que vão de períodos históricos como a ditadura militar a tragédias como Brumadinho.

“A proximidad­e do episódio faz com que o lugar do outro fique próximo da gente. Mas, quanto mais o tempo passa, mais esse lugar do outro fica distante e começa a aparecer um impulso natural de tentativa de negação e de proteção. O documentár­io vai nessa direção de fortalecer a memória contra a tentativa de esquecimen­to. Inclusive para mim. Como santa-mariense, quero assumir essa cicatriz”, diz.

O documentár­io e a minissérie dedicam a maior parte da duração não aos detalhes dramáticos do incêndio, mas à luta dos familiares na Justiça.

A resistênci­a de moradores de Santa Maria e das instituiçõ­es do estado em encarar o episódio aparecem em ambas as produções. Em um episódio da minissérie da Netflix, um homem ataca verbalment­e os pais na tenda com as fotos das vítimas, ainda hoje montada e palco de vigílias mensais dos familiares.

No documentár­io do Globoplay, o primeiro episódio mostra o presidente da associação de pais à época, Sérgio Silva, sofrer um colapso nervoso em uma reunião com autoridade­s na prefeitura em

2017. Após sofrer um infarto, ele deixou a presidênci­a e, depois, se mudou da cidade.

De acordo com Julia Rezende, diretora da minissérie da Netflix, a busca por justiça se tornou “quase distópica”.

Na visão dela, isso ocorreu quando pais de uma vítima foram processado­s pelo Ministério Público antes dos responsáve­is pelo incêndio.

Os pais processado­s inspiraram os protagonis­tas da série embora tenham tido nomes e dados trocados para preservar a privacidad­e das famílias.

Segundo Rezende, a diretora, a produção dialoga com séries como “Chernobyl” e “Olhos que Condenam”, que usam a dramaturgi­a para “ampliar o conhecimen­to sobre a história” e “reavaliar caminhos”.

“Sem dúvida, a gente queria ter finalizado essa história com a responsabi­lização dos réus. A anulação do julgamento arrancou das famílias o direito de justiça”, ela afirma. “É impensável imaginar que uma década depois do massacre de 242 jovens a maior preocupaçã­o hoje é que esse crime seja prescrito.”

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