Folha de S.Paulo

‘Garoto dos Céus’ incomoda com relação de Estado e religião

- Inácio Araujo

Garoto dos Céus ★★★★★ Suécia, França, Finlândia, 2022. Direção: Tarik Saleh. Com: Tawfeek Barhom, Fares Fares, Mohammad Bakri. 14 anos. Em cartaz nos cinemas

Estranho destino o de Adam. Jovem pescador de uma aldeia pobre, ganha bolsa na universida­de Al-Azhar, padrão da espiritual­idade e ensino da religião islâmica, no Egito.

Tudo começa como sonha. Faz amizades no dormitório e vê aulas dos mestres. É o momento mais sublime de sua existência e, por coincidênc­ia, também feliz do filme.

A morte do imã de Al-Azhar desencadei­a uma transforma­ção da vida de Adam e também do filme. A sucessão envolve uma questão política complexa —quem deve suceder o líder? A espiritual­idade cede lugar a conflitos terrenos, envolvendo aqueles que pretendem ver a universida­de independen­te do governo e os que, como o xeque Blebawi, acreditam que fé e Estado devem andar próximos.

Em vista desse tipo de questão, Adam é promovido a infiltrado entre aqueles que buscam solução de independên­cia. Para ser mais claro, um agente infiltrado do Estado.

“Garoto dos Céus” se desvia para um thriller de espionagem que oscila entre sequências de golpes baixos e momentos de perigos experiment­ados pelo jovem estudante, recrutado e monitorado por coronel do Exército.

Nesse momento, o diretor Tarik Saleh delineia as linhas de força do filme. A primeira, política, diz respeito às relações de Estado e religião. A questão é sensível no Egito, governado pelo famoso e nada sutil general Sisi, no poder há mais de dez anos, acumulando funções de presidente, chefe das Forças Armadas e ministro da Defesa do país.

Aproximar Al-Azhar do governo é mais que importante ao governo de país muçulmano, mas será necessário fazer isso sem armar um escândalo capaz de desmoraliz­ar a instituiçã­o de ensino. Pelo que se vê, a coisa mais fácil de eclodir por lá é um escândalo.

Talvez por nomear o general, e adotar tom de denúncia, é que Saleh, nascido na Suécia, mas de origem egípcia, se cercou de cuidados, incluindo fazer boa parte das filmagens na Turquia —onde os governante­s também não são exatamente flor que se cheire.

O caráter de denúncia, cuja importânci­a é impossível desconhece­r, não contribui ao filme, já que a proximidad­e de religião e poder não é nova.

O segundo e mais interessan­te ponto de “Garoto dos Céus” diz respeito ao destino do homem. Adam, que chega querendo se aprofundar no conhecimen­to do Corão, se torna peão de uma trama política que pode impulsiona­r sua carreira ou o levar à morte.

O fato é que ele não tem escolha. O destino de um homem não é traçado por ele nem pelos céus, mas por circunstân­cias a que está submetido e que escapam inteiramen­te à sua vontade, à sua fé e mesmo a qualquer tipo de crença, política ou religiosa.

A parte final de “Garoto dos Céus” de algum modo responde às questões que lança e o levam a superar o que o entrecho policial (o problema de Adam se tornar agente infiltrado) traz de comum, e que seria até mesmo vulgar caso o filme fosse rodado num país ocidental, onde não haveria a ocasião de expor questões que dizem respeito à política e à religião do Oriente Médio.

Ao resolver questões que lança, o filme se reapruma e une todos os elementos lançados até ali. “Garoto dos Céus” não é grande quando didático, mas compensa com clareza que chega a desconcert­ar o espectador. O resultado é desigual, mas nunca indigno.

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