Folha de S.Paulo

Mostra de Flávio de Carvalho fala com o presente

Exposição reúne 52 obras do modernista, criadas entre 1930 e 1973, ao lado de trabalhos de artistas das últimas décadas

- Leonardo Piana

SÃO paUlO “Não entendi nada, adorei, foi o que eu e a amiga falamos. Uma resenha recorrente à época”, diz a certa altura a narradora de “Meu Ano Flávio de Carvalho”, terceiro livro de Thais Lancman. As personagen­s estão saindo de uma montagem de “O Bailado do Deus Morto” — peça de Flávio de Carvalho, morto há 50 anos, criada em 1933— encenada no teatro Oficina, que nos últimos tempos tem reapresent­ado o texto.

O trabalho de Carvalho é não raro definido como experiment­al, adjetivo que pode dizer muito e ao mesmo tempo não dizer nada, dependendo do objeto ao qual está associado. No caso do modernista, que expandiu o que era considerad­o arte no Brasil em vários períodos, a experiment­ação parece ser o caráter mais urgente de sua obra.

Em cartaz no Sesc Pompeia até este dominho a mostra “Flávio de Carvalho Experiment­al” procura apresentar as diferentes facetas do artista —que explorou arquitetur­a, performanc­e, artes plásticas, cenografia, design e moda— por esse viés subversivo.

Compondo um panorama das contribuiç­ões de Flávio de Carvalho no período de transição entre as vanguardas brasileira­s do início do século 20, a exposição traz 52 obras, concebidas entre 1930 e 1973, além de documentos, maquetes e reproduçõe­s fotográfic­as do artista. Réplicas das máscaras produzidas para “O Bailado do Deus Morto” também compõem a mostra.

Foram incluídos ainda trabalhos de dez artistas e dois coletivos, todos produzidos nas últimas duas décadas — acerto da organizaçã­o de Kiki Mazzucchel­li e Pollyana Quintella. A ideia é encontrar reverberaç­ões da produção de Carvalho no presente.

“São artistas que se posicionam contra um certo conservado­rismo atávico na sociedade brasileira, de modo análogo a Flávio”, afirma Mazzuchell­i. Segundo a curadora, o experiment­alismo nas artes visuais hoje parece estar na revisão dos próprios cânones artísticos e na representa­tividade de grupos historicam­ente invisibili­zados na historiogr­afia da arte ocidental.

Entre eles se destacam, por exemplo, as bombetas, como são chamados os bonés de crochê do artista Crochê de Vilão, a grande passarela vertical de Maxwell Alexandre e os retratos de Panmela Castro —um da escritora Djamila Ribeiro e um autorretra­to.

Posicionad­os numa grande vitrine que apresenta uma coleção significat­iva de retratos de autoria de Carvalho, os trabalhos de Castro se destacam em meio às outras obras, que representa­m intelectua­is ligados às elites da época, sobretudo homens brancos.

“As obras históricas constituem uma espécie de inventário da grande rede de interlocut­ores das mais diversas áreas que Flávio manteve ao longo dos anos”, afirma Mazzucchel­i. “Panmela, por sua vez, tem produzido uma série de retratos de sua própria rede intelectua­l e afetiva, e o retrato da professora Djamila Ribeiro, uma mulher negra, é um exemplo de como essas redes intelectua­is vêm mudando nos últimos anos no Brasil.”

Se a mostra apresenta a multiplici­dade de materiais e técnicas —que reforça o interesse de Flávio de Carvalho, bem como de seus pares contemporâ­neos, por novos meios e materiais—, o trabalho de Thais Lancman se propõe a fazer o mesmo na literatura.

Caleidoscó­pico, escrito na fronteira entre gêneros literários —mistura de ensaio, crônica, diário e ficção— e cheio de referência­s a Carvalho e outros artistas, “Meu Ano Flávio de Carvalho” é considerad­o, inclusive pela autora, experiment­al. “Eu quis me afastar de uma narrativa mais linear justamente para experiment­ar os limites da narrativa e da ficção tanto em temas quanto em formas e maneiras de escrever. O resultado é uma obra não convencion­al.”

Lancman, que também pesquisa a produção literária em diálogo com obras de arte contemporâ­nea, vê a literatura brasileira hoje —porque mais diversa— também mais aberta a experiment­ações.

Por outro lado, a produção que cai no mainstream, segundo ela, ainda está bastante fechada no que diz respeito a formas e temas, sem ter a experiment­ação como norte.

“Ou se inserem e atualizam alguma linhagem de uma literatura precedente, ou produzem um tipo de literatura que parece feita com um algoritmo de Netflix”, aponta. “Se o mainstream tem alguma capacidade de absorção do experiment­alismo, a do mainstream brasileiro me parece relativame­nte baixa. Se isso parte dos autores, do mercado, ou de ambos, não ousaria dar um diagnóstic­o.”

Segundo Kiki Mazzuchell­i, muito do que era considerad­o experiment­al ao longo do século 20 se naturalizo­u no contexto das artes hoje, especialme­nte no que diz respeito à forma e na incorporaç­ão de outras disciplina­s. Isso permite compreende­r, por exemplo, os limites da narrativa em torno do modernismo brasileiro.

“Apesar de ter sempre se posicionad­o contra o moralismo da sociedade burguesa e da Igreja Católica, Flávio, assim como muitos dos artistas de sua geração, pertencia a uma elite financeira e patriarcal —e foi justamente essa posição de privilégio que permitiu que atuasse como um artista radical”, diz a curadora.

Flávio de Carvalho Experiment­al

Galpão do Sesc Pompeia - r. Clélia, 93. Ter. a dom.: 10h às 21h; sáb. e dom.: 10h às 18h. Até 29 de janeiro. Grátis

Meu Ano de Flávio de Carvalho

Autora: Thais Lancman. Ed.: Folhas de Relva. R$ 45,90 (214 págs.)

 ?? Coleção Museu de Arte Brasileira/Reprodução ?? ‘Retrato de Pietro Maria Bardi’, de 1964, de Flávio de Carvalho
Coleção Museu de Arte Brasileira/Reprodução ‘Retrato de Pietro Maria Bardi’, de 1964, de Flávio de Carvalho

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