Folha de S.Paulo

Os sons e os silêncios perdidos

- Ruy Castro

Nova York, maio de 1963, há inacreditá­veis 60 anos. João Gilberto acabara de gravar o LP “Getz/Gilberto” para o produtor Creed Taylor, ainda sem previsão de lançamento, e não estava com pressa para voltar ao Brasil. Com o mundo apaixonado pela bossa nova, convites para trabalhar não faltavam. E o primeiro que ele recebeu foi para uma temporada em Viareggio, na Itália, com seu velho amigo João Donato, então morando em Los Angeles. A eles se juntaram o contrabaix­ista Tião Neto e o baterista Milton Banana, ambos também em NY, e lá se foram para a bota.

A turnê constou de três meses no Bussoloto, uma boate no segundo andar da Bussola, esta uma casa de espetáculo­s capaz de comportar atrações como os Harlem Globetrott­ers, gênios do basquete de exibição, Chubby Checker, Ray Charles e outros de igual quilate. Mas os cartazes na fachada não faziam distinção entre os dois espaços e, logo abaixo dos Globetrott­ers, estava o nome de João Gilberto, acima das celebridad­es locais, os italianos Peppino di Capri e Bruno Martino.

João Gilberto, Donato, Tião e Banana talvez tenham formado o maior quarteto de violão, piano, baixo e bateria da história da bossa nova. Amigos desde os tempos do bar do Hotel Plaza, em Copacabana, nos anos 1950, eles hipnotizar­am os clientes do Bussoloto, desfizeram o grupo e nunca mais tocaram juntos. Se pelo menos um daqueles shows chegou a ser gravado, as fitas estarão perdidas em alguma gaveta do La Bussola, hoje chamado de Bussola Vessila.

Por negligênci­a das gravadoras, vaidade dos artistas ou sabe-se lá por que, a música brasileira já deixou de registrar maravilhas. João Gilberto e João Donato viveram nos mesmos países e cidades por quase 70 anos. Adoravam-se, admiravam-se, viam-se com frequência e tinham um assunto intermináv­el, às vezes feito de longos silêncios cheios de significad­o.

Pois nem esses silêncios foram gravados.

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