Folha de S.Paulo

Deixem Garfield em paz!

Proteger liberdade de expressão não exclui demanda por regulament­ação

- David Wiswell Escritor, roteirista e comediante americano Tradução de Clara Allain

Como líderes mundiais em plataforma­s de tecnologia e em falar alto demais, os EUA mais uma vez comprovara­m dedicação à liberdade de expressão, para melhor ou para pior.

Decisões tomadas pela Suprema Corte em dois processos recentes envolvendo a responsabi­lidade de empresas por crimes que supostamen­te derivaram de sua utilização e promoção de algoritmos terão impacto sobre o futuro da liberdade de expressão na internet.

Esses processos perguntam: até onde vai a culpa dessas empresas? Como as decisões sobre ataques terrorista­s afetam minha possibilid­ade de postar memes fofíssimos de gatos?

Nos dois casos, famílias de vítimas do Estado Islâmico (EI) processara­m plataforma­s alegando que ajudaram e incentivar­am os terrorista­s. Por respeito às perdas, não incluirei uma piada neste parágrafo, mas volto com minhas piadas típicas, burrinhas e infantis.

QUE COCÔ (não falei?). Na ação Gonzalez vs. Google, autores alegam que o Youtube promoveu conteúdos do EI, ajudando a radicaliza­r os terrorista­s. Isso questionou a seção 230 da Lei de Decência nas Comunicaçõ­es, que diz que empresas de internet não podem ser tratadas como responsáve­is por conteúdos. Ela configura a pedra fundamenta­l da liberdade de expressão na internet americana. Como as empresas não são responsáve­is, elas podem nos deixar postar livremente no espaço. Deixe os memes de gato correr soltos!

Alguns dizem que reverter a medida 230 seria como responsabi­lizar a biblioteca pelas ideias do livro “Mein Kampf”, de Hitler. Por mais que eu quisesse que a biblioteca parasse de fornecer uma coisa tão vil e horrível quanto um... livro (eca!), devo concordar. Mas, como o algoritmo promoveu o conteúdo, foi mais como se você fosse à biblioteca e a bibliotecá­ria te entregasse “Mein Kampf”: “ei, você curte Hitler? Quer ler discurso de ódio?”.

Até Hitler poderia achar isso uma distorção. Mas será que é ilegal? O processo Twitter vs. Taamneh argumentou que, por não fazer o suficiente para manter o EI fora deles, serviços de internet ajudaram e instigaram ataques. Parece que você poderia processar uma rodovia pela qual um terrorista trafegou, um serviço de email que ele usou ou um meme de gatinho cuja alegria pura lhe deu a força para desempenha­r sua tarefa hedionda. Deixem Garfield em paz!!!

Juízes da Suprema Corte decidiram que, como os algoritmos oferecem conteúdo sem objetivida­de, as plataforma­s não são responsáve­is. Mas se negaram a dar um veredicto sobre a seção 230 e remeteram a questão de volta para os tribunais de instância inferior.

Mais ou menos como quando você não quer fazer suas tarefas em casa e obriga seu irmãozinho a decidir sobre o destino da liberdade de expressão enquanto joga Mario Kart.

Juízes mencionara­m que estavam confusos e disseram que esse era um trabalho que deveria ser entregue ao Congresso.

Acho que em última análise os juízes fizeram o certo ao proteger a liberdade de expressão, mas as empresas precisam ser mais bem regulament­adas por pessoas que conhecem a fundo o modo como essas plataforma­s operam e vão operar com o futuro da inteligênc­ia artificial. Eu só não procuraria um órgão regulador no Youtube, porque este poderia recomendar... o Estado Islâmico.

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