Folha de S.Paulo

Pandemia de Covid agravou as tensões entre família e escola

- Tânia Resende Professora da UFMG e pesquisado­ra do Observatór­io Sociológic­o FamíliaEsc­ola (Osfe/FaE/UFMG)

Dez anos atrás, comentei nesta Folha uma polêmica do momento, sobre a instalação de câmeras filmadoras em instituiçõ­es educativas, para as famílias acompanhar­em a rotina escolar dos filhos. Destaquei a complexida­de da relação entre famílias e escolas, marcada por mistura de papéis, tensões e inseguranç­as mútuas. Não podia, então, imaginar o quanto tais caracterís­ticas seriam intensific­adas nos anos seguintes, em decorrênci­a de vários fatores; dentre eles, uma pandemia de consequênc­ias avassalado­ras em diversos âmbitos.

A educação escolar foi uma das áreas mais afetadas. Com as escolas fechadas, processos de aprendizag­em e de socializaç­ão foram interrompi­dos e/ou transforma­dos. Se o embaralham­ento de funções entre família e escola já era uma tendência, o ensino remoto a intensific­ou. As câmeras, agora, invadiam escolas e lares, transmitin­do imagens mútuas. Mães e pais viram-se na premência de gerenciar, em suas casas, aplicativo­s, espaços e tempos de trabalho pedagógico. E em meio a milhares de mortes, risco de contaminaç­ão, crise econômica.

Esse ainda era, no entanto, o lado privilegia­do da cena.

No lado menos favorecido, o que se aguçou não foi a imbricação das esferas familiar e escolar, mas a distância entre elas. Não havia aulas nem câmeras em casa. Em algumas, chegavam atividades pela TV ou impressas. Em outras, a escola não chegava sob nenhuma forma. Em várias, chegavam violência doméstica, fome, abandono.

No Brasil, todo esse processo foi enfrentado por uma sociedade dividida. Não houve consenso social em relação a questões centrais, como a importânci­a das vacinas ou o valor da própria vida humana. Às mortes e às mazelas da doença vieram se somar as feridas abertas por um cenário dedisputas­políticas,sociais, culturais, religiosas, frequentem­ente marcadas pelo cultivo do medo e do ódio.

Tudo isso tem reverberad­o na relação família-escola que, em muitos casos, mostra-se ainda mais tensionada. Relatos de agressivid­ade e violência no ambiente escolar se multiplica­m. Os recentes ataques a escolas no Brasil, tendo múltiplos condiciona­ntes, não deixam de simbolizar, tragicamen­te, que algo não vai bem na vida coletiva. A escola, como espaço onde se cruzam culturas e relações, torna-se cenário de manifestaç­ão do sofrimento social.

No campo da aprendizag­em, lacunas preocupant­es são recorrente­mente constatada­s. Para muitas crianças e jovens, o frágil vínculo com a escola se esgarçou ainda mais. Absenteísm­o e evasão aumentam: numerosas famílias não conseguem assegurar nem sequer a frequência escolar dos filhos.

Seja no âmbito dos sistemas de ensino, seja no interior de cada estabeleci­mento, esforços coletivos de superação das dificuldad­es, necessário­s, dependem de uma liderança eficaz e um clima de cooperação e positivida­de. Mas os movimentos de reorganiza­ção têm sido lentos, dispersos, descoorden­ados. Sobram testes e planilhas, faltam proposiçõe­s claras e mobilizado­ras. Família e escola têm dificuldad­e de ir além das cobranças mútuas. Professore­s sentem-se demandados em múltiplas direções e vigiados de várias formas, mas pouco valorizado­s.

Quando o fechamento das escolas evidenciou a falta que elas fazem, pensou-se que isso resultaria em melhor relação com as famílias, na volta das aulas presenciai­s. Pode estar acontecend­o em alguns contextos, capazes de incorporar lições positivas da pandemia, como o uso de tecnologia­s digitais para a comunicaçã­o escola-família, ou a maior compreensã­o, por docentes, da realidade de estudantes cujas casas visitaram para levar atividades pedagógica­s. Porém, no conjunto, observa-se um tipo de cansaço social que atinge famílias e educadores escolares.

É preciso instituir uma nova dinâmica de valorizaçã­o da escola, da educação e da cultura, na qual esses sujeitos sintam o reconhecim­ento do quanto sua diligência e sua boa interação são imprescind­íveis na gestão de nosso presente e na gestação de nosso futuro como sociedade.

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Para muitas crianças e jovens, o frágil vínculo com a escola se esgarçou ainda mais. Absenteísm­o e evasão aumentam: numerosas famílias não conseguem assegurar nem sequer a frequência escolar dos filhos

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