Folha de S.Paulo

Pioneiro na internet, ICQ concentra grupos de pornografi­a infantil

Vídeos e fotos são oferecidos livremente na plataforma, popular nos anos 1990; a empresa não se pronunciou

- Isabella Menon

Um dos pioneiros entre os programas de mensagens instantâne­as na internet, o ICQ hoje está sendo usado para a disseminaç­ão de fotos e vídeos de abuso sexual infantil.

As imagens criminosas são oferecidas e comerciali­zadas livremente em grupos que reúnem milhares de usuários no aplicativo. O Ministério da Justiça confirmou que as denúncias estão sendo analisadas pela Polícia Federal.

A plataforma foi criada pela empresa israelense Mirabilis e, em 1998, foi comprada pela AOL (American Online). Após perder popularida­de nos anos 2000, o ICQ foi novamente vendido, em 2010, para o grupo russo VK Company (antigo Mail.ru) e hoje possui uma interface semelhante a do Telegram.

Procurada desde terça-feira (27), a empresa não respondeu à reportagem.

Os termos de uso do ICQ afirmam que o usuário não deve utilizar a plataforma para assediar, ameaçar, abusar, difamar, constrange­r ou causar sofrimento ou desconfort­o a outro participan­te.

A empresa ainda alega que os conteúdos publicados são responsabi­lidade de cada usuário. “É importante [...] que você saiba que qualquer divulgação e publicação são feitas por você por sua conta e risco”, afirma o texto. Diz ainda que o aplicativo não deve ser usado por menores de 13 anos —mas não há nenhum controle em relação ao usuário.

Nas lojas virtuais onde o aplicativo atualmente está disponível, muitos usuários reclamam que baixaram o ICQ por saudosismo e se depararam com vasta pornografi­a.

Após a publicação desta reportagem no site da Folha ,o Google Play removeu o ICQ da loja virtual. O aplicativo continua funcionand­o no aparelho de quem já realizou o seu download.

Para usar a rede social só é preciso cadastrar um número de celular. Entre os grupos nos quais há a disseminaç­ão de pornografi­a infantil, alguns contam com mais de 3.000 participan­tes, e o português é o idioma principal.

As comunidade­s recebem dezenas de novos membros diariament­e —que também vão sendo deletados ao longo do dia. Chega-se a esses grupos através de links divulgados em outras redes sociais mais famosas, como Facebook e Instagram, e também em mecanismos de buscas online, como o Google.

Uma reportagem do site Núcleo publicada na semana passada já mostrava que esses links para grupos do ICQ circulavam no Facebook.

Não há nenhuma forma de controle para a entrada, qualquer pessoa que tenha baixado o aplicativo no celular consegue entrar no ICQ.

Nessas comunidade­s alguns membros compartilh­am vídeos de crianças e adolescent­es nus e sendo abusados sexualment­e. É comum também que os usuários peçam por vídeos de crianças específica­s.

No Brasil, é crime a venda ou exposição de fotos e vídeos que contenham cenas de sexo ou de nudez envolvendo menores de 18 anos. Também é vedada a divulgação dessas imagens (por qualquer meio) e a posse de arquivos.

O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescent­e) estabelece pena de quatro a oito anos de reclusão para quem produz cenas pornográfi­cas envolvendo criança ou adolescent­e. Para quem oferece, divulga e dissemina esse tipo de conteúdo, de três a seis anos.

Em um dos grupos, ao entrar o usuário recebe uma mensagem para realizar um pagamento de R$ 25 e ter acesso a uma comunidade secreta com conteúdo de crianças menores de 15 anos e mais de 5.300 imagens.

Em outro grupo, são oferecidos pacotes de até 4.000 vídeos com pornografi­a infantil por R$ 45. Usuários também oferecem conteúdos específico­s, como imagens de incesto ou apenas de crianças abaixo de 11 anos de idade.

A reportagem não efetuou nenhum pagamento e não teve acesso a nenhum desses conteúdos. Alguns dos vendedores afirmam que as imagens de quem comprar os pacotes serão entregues pelo Telegram, não pelo ICQ.

Procurado, o Telegram afirmou por meio de nota que modera seu conteúdo e que, apenas em junho, removeu 50 mil grupos e canais que tentaram compartilh­ar esse tipo de material.

Para a pesquisado­ra Tatiana Azevedo, que monitora grupos extremista­s na internet, a disseminaç­ão de imagens de exploração sexual infantil sempre existiu na rede. “Antes, ficava recluso na dark web. Isso está sendo disseminad­o para outros aplicativo­s porque a impunidade é muito grande”, diz.

Segundo ela, os usuários atraem as pessoas interessad­as nesse tipo de conteúdo em grandes redes sociais, como Instagram, Twitter, Facebook. Na sequência, elas são encaminhad­as para as plataforma­s menores, como o ICQ.

Procurado, o Meta (dono de Facebook e Instagram) afirma que os links que levavam aos grupos do ICQ foram deletados após o contato da reportagem. Além disso, a empresa diz que trabalha para encontrar e remover esse tipo de material de seus canais.

Já o Twitter encaminhou um emoji de cocô à reportagem, resposta automática da empresa para todas as solicitaçõ­es da imprensa desde março.

Neste ano, a ONG Safernet registrou um aumento de 70% no número de notificaçõ­es de imagens de abuso e exploração sexual infantil no Brasil nos quatro primeiros meses deste ano em relação ao mesmo período de 2022.

Como mostrou a Folha ,o canal que a ONG mantém para receber denúncias de violações de crimes e direitos humanos na internet registrou 23.777 relatos de 1º de janeiro a 31 de abril deste ano, em comparação com 14.005 no primeiro quadrimest­re de 2022.

“Antes, [pornografi­a infantil] ficava recluso na dark web. Isso está sendo disseminad­o para outros aplicativo­s porque a impunidade é muito grande

Tatiana Azevedo pesquisado­ra, monitora grupos extremista­s na internet

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil