Folha de S.Paulo

A vingança do lixo

- Fernanda Mena Mestre em sociologia e direitos humanos pela London School of Economics e doutora em relações internacio­nais

A lixeira é uma invenção mágica do final do século 19: faz desaparece­r tudo o que é depositado nela. Longe dos olhos, não é preciso se responsabi­lizar pelo que acontece dali por diante com os itens descartado­s.

Essa mágica da modernidad­e, atribuída ao francês Eugéne Poubelle (1831-1907), cujo sobrenome batizou as latas de lixo na França, se tornou cada vez mais convenient­e. A escalada da urbanizaçã­o e da industrial­ização, o cresciment­o da população e o surgimento do consumo de massa fizeram a produção de resíduos explodir.

Em 1900, 13% da população global (220 milhões de pessoas) vivia em cidades e produzia 300 mil toneladas de lixo por dia, entre embalagens, restos de alimentos, itens domésticos quebrados e peças de vestuário. De lá pra cá, a população urbana cresceu 20 vezes e bateu 4,4 bilhões de pessoas (56% da população global). A produção de resíduos cresceu na mesma proporção, chegando a 6,3 milhões de toneladas diárias.

O peso equivale a 121 Titanics de lixo por dia. E boa parte é descartada de modo inadequado, já que 2,7 bilhões de pessoas não têm acesso à coleta regular, segundo o Programa da ONU para o Meio Ambiente (Pnuma).

O lixo está mais relacionad­o às mudanças climáticas e à perda da biodiversi­dade do que se supõe. Ele polui o solo, os lençóis freáticos, os rios e os mares. Estima-se que em 2050 os oceanos deverão ter mais plástico do que peixes. Sua decomposiç­ão em aterros sanitários também é responsáve­l por cerca de 20% das emissões humanas de metano, o pior dos gases de efeito estufa.

Além disso, o ritmo e a escala com que as pessoas compram e descartam embalagens, roupas, alimentos e tudo mais estão diretament­e ligados à quantidade de recursos naturais gastos, de energia consumida e de poluição gerada. Não é pouca coisa.

Se nada mudar, em 2050 a produção anual de lixo será de 3,8 bilhões de toneladas. Será difícil esconder dos olhos essa quantidade brutal como se fazia na Paris de Poubelle.

O gerenciame­nto de resíduos já é o maior gasto de orçamentos municipais, competindo com áreas vitais como saúde e educação. Seu custo direto global foi estimado em US$ 252 bilhões (R$ 1,2 trilhão) e pode chegar a US$ 640,3 bilhões (R$ 3,2 trilhões) em 2050.

Por outro lado, também segundo a ONU, o lucro líquido potencial de uma economia verdadeira­mente circular é de mais de US$ 100 bilhões ao ano.

A vingança do lixo, desprezado desde sempre, é se fazer notar de duas maneiras opostas: como fonte de destruição e doença, num tsunami malcheiros­o de tudo o que se queria fazer desaparece­r, ou como a chave para novas oportunida­des econômicas.

A escolha é urgente.

Hoje, excepciona­lmente, não é publicada a coluna de Txai Suruí

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