Folha de S.Paulo

No jogo da raça

Políticas de cotas raciais espalham o gás tóxico do racismo no meio do povo

- Demétrio Magnoli Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

Cerca de dez anos atrás, um candidato ao ensino superior que teve sua autodeclar­ação racial negada por um tribunal racial (“comissão de heteroiden­tificação”, segundo a novilíngua da burocracia identitári­a) solicitou meu auxílio para reverter a sentença. Neste ano, 204 candidatos à USP recorrem contra negativas similares, inclusive o pardo Alison Rodrigues, que perdeu a vaga em medicina e ingressou com ação judicial.

Nenhum deles fez contato comigo, mas atualizo a resposta pessoal que ofereci no passado. Talvez ela interesse a dezenas de milhares de jovens, Brasil afora:

Prezado candidato, não posso ajudá-lo. Você entrou num jogo com regras subjetivas, arbitrária­s. É impossível comprovar objetivame­nte sua raça, pois raças humanas não existem.

Políticas de preferênci­as raciais exigem uma nítida definição da raça de cada indivíduo. Nos EUA, as leis de segregação racial do início do século 20 solucionar­am o “problema”: negro é quem tem uma “gota de sangue” negro. No Brasil, graças à ausência histórica de leis semelhante­s, reconheceu-se a mistura: miscigenaç­ão biológica e mestiçagem cultural. Por isso, quando se introduzir­am as (mal) chamadas ações afirmativa­s raciais, tornou-se necessário criar tribunais raciais: bancas que decidem visualment­e quem é “branco” e quem é “negro” ou “indígena”.

Os autodeclar­ados pardos formam 45% da população. Nas estatístic­as oficiais, junto com os autodeclar­ados pretos, compõem a categoria “negros”. Com base nessa falsificaç­ão estatal, os identitári­os proclamam que os “negros” somam 55% da população. A alegação só vale na esfera da propaganda: na hora H, plim plim!, os tribunais raciais transforma­m os pardos em “brancos”. Eles serão “brancos” para efeito de cotas, mas “negros” para finalidade­s discursiva­s.

O movimento identitári­o argumentou, originalme­nte, que as cotas raciais contribuir­iam para a redução do racismo. Hoje, 20 anos depois, segundo eles, o racismo é mais intenso do que nunca. Daí, não concluem que o “remédio” fracassou, mas que é preciso dobrar a dose, torná-lo permanente e, sobretudo, difundi-lo para além das universida­des.

Atualmente, o interesse verdadeiro dos ativistas identitári­os é implantar cotas no Judiciário, no Legislativ­o e no aparato da administra­ção pública. Ou seja: abrir atalhos para suas próprias carreiras profission­ais.

A elite política concorda, da extrema esquerda à extrema direita, com as políticas de cotas raciais no ensino superior. É que as preferênci­as raciais cumprem a função crucial de mascarar a paisagem cronicamen­te desastrosa de nosso sistema público de educação básica. As crianças e jovens pobres não têm direito a uma escola decente —mas, em troca, as universida­des concedem vagas segundo critérios raciais aos que tiveram a sorte de cursar escolas públicas melhores. Pão e circo.

Você, candidato excluído, é irrelevant­e para a política identitári­a. Os tribunais raciais são constituíd­os por militantes do movimento identitári­o. Por definição, atribuem marcadores de raça de acordo com suas impressões, sob a justificat­iva metafísica de que refletem o “olhar da sociedade”. Na melhor das hipóteses, você será visto como inevitável dano colateral no caminho que conduz à redenção. Na pior, como um perjuro: um falseador de sua raça.

As políticas de “cotas sociais” —isto é, a reserva de vagas para alunos de escolas públicas— não devem ser condenadas. Idealmente, seriam emplastros provisório­s utilizados enquanto o Estado promove uma reforma radical no ensino público. Contudo, o sistema de cotas raciais separa, pelo critério da cor da pele, estudantes que cursaram as mesmas escolas públicas, residem nos mesmos bairros e provêm do mesmo estrato social. Aí encontra-se o efeito mais perverso e duradouro dessas políticas: elas espalham o gás tóxico do racismo no meio do povo.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil