Folha de S.Paulo

‘Tô nem aí’

- Oscar Vilhena Vieira

PM matou 94% a mais na Baixada Santista, mas governador não está preocupado

Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universida­de Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de “Constituiç­ão e sua Reserva de Justiça”

“Sinceramen­te, nós temos muita tranquilid­ade com o que está sendo feito. E aí o pessoal pode ir na ONU, pode ir na Liga da Justiça, no raio que o parta, que eu não tô nem aí (sic)”. É o que brada o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, após a Conectas Direitos Humanos e a Comissão Arns denunciare­m à ONU as operações letais e a escalada da violência policial na Baixada Santista.

Mas o governador está tranquilo.

O número de pessoas mortas por policiais militares em serviço na Baixada Santista aumentou em 94% no primeiro bimestre de 2024 em comparação com o mesmo período do ano anterior, segundo dados do Ministério Público Estadual de São Paulo.

Ainda assim, o governador está tranquilo.

Opera o desmonte da política de implementa­ção de câmaras corporais, que entre 2020 e 2022 foi responsáve­l pela redução de 53,7% nas mortes de policiais em serviço. O seu desprezo com a vida desses servidores públicos é chocante. De outro lado, houve queda de 63,7% nos índices de letalidade policial nos batalhões onde a tecnologia foi implementa­da. Entre a narrativa de homem duro e a vida de policiais fica com a primeira, ainda que mais policiais venham a morrer.

O governador está tranquilo.

Não se importa que mais famílias de policiais estejam sofrendo.

Nomeou como secretário de Segurança Pública um ex-integrante da Rota, que, publicamen­te, diz que policial bom teria que ter pelo menos três homicídios no currículo. O governador está tranquilo. As incursões policiais realizadas provocam caos e terror, afetando a rotina das pessoas que residem e trabalham na comunidade. Relatos colhidos pela Defensoria Pública apontam violações dos direitos de ir e vir dos cidadãos e de privacidad­e e intimidade, com a realização de invasão de domicílio e busca e apreensão em residência­s de forma generaliza­da, sem mandado judicial e de forma violenta. Foram também colhidos relatos de destruição de residência­s e comércios pelas forças policiais.

Mas o governador está tranquilo.

Os boletins de ocorrência­s revelam execução de pessoas com múltiplos disparos, a curta distância, versões policiais que se repetem, indícios da não preservaçã­o das cenas dos crimes, laudos de necropsia produzidos com a presença de policiais militares no local, sem fotos ou identifica­ção de local de disparos. Em muitos casos, embora a polícia sustente a ocorrência de confronto, as mortes ocorreram nas casas –e nos quartos— dos moradores.

Mas o governador está tranquilo.

A manchete no jornal que descreve a história de Hildebrand­o Neto, pai de dois filhos de quatro e três anos, deficiente visual, executado em seu quarto, enquanto tomava café com um amigo, indica arbítrio. Seu sobrinho, de dois anos, além de sua mãe e irmã, estavam na residência. Ambas avisaram os policiais que entraram na casa errada. Não adiantou. Seu sonho de cantar foi interrompi­do. Sua mãe diz: “Só consigo sentir tristeza no coração”, mas o governador diz: “não tô nem ai”

Ao longo das últimas décadas, a Polícia Miliar de São Paulo passou por um profundo processo de modernizaç­ão e convergênc­ia com o Estado de Direito, ampliando a proteção à vida do cidadão e reduzindo a morte de policiais. No último ano, temos testemunha­do uma tentativa de milicianiz­ação da polícia.

Mas o governador, continua tranquilo.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil