Folha de S.Paulo

Sobe com a pizza, entregador (ou eu te mato)

- Marcos Nogueira folha.com/cozinhabru­ta

Nilton Ramon de Oliveira, entregador do ifood, tomou um tiro porque, segundo relatos, recusou-se a subir com a comida até o apartament­o do agressor, policial militar.

O caso aconteceu no último dia 4, no subúrbio do Rio. A vítima está hospitaliz­ada (a bala rompeu a veia femoral), e sua família diz sofrer intimidaçã­o de PMS.

Essa é uma tragédia com múltiplas camadas de desgraça.

No âmbito municipal, é o retrato de uma cidade que estrebucha para não largar mão das relações sociais estacionad­as no século 19, quando o Rio era a capital de um império escravocra­ta.

Passei seis meses no Rio em 2019, não sei se dá para dizer que morei, mas tampouco era turista. Vivia num apartament­o e fazia coisas de residente, como pedir comida pelo ifood.

Na primeira vez em que chamei uma pizza, fiquei surpreso quando o entregador tocou a campainha sem sequer um aviso pelo interfone. Narrei a minha surpresa para amigos cariocas, que se surpreende­ram com o fato de eu estar surpreso.

Em São Paulo, pelo menos nos bairros em que eu morei, essa coisa de entregador subir teve vida curtíssima.

Logo depois de inventarem o disque-pizza —nenhuma outra comida era entregue, e o termo “delivery” foi adotado décadas mais tarde—, os condomínio­s passaram a exigir que os moradores fossem buscar o pedido no portão da rua.

O cuidado, evidenteme­nte, não tinha nada a ver com o bem-estar do trabalhado­r da entrega.

Era apenas uma medida para evitar que possíveis criminosos invadissem o prédio. Taí uma preocupaçã­o que os cariocas não têm.

Você pode morrer de bala perdida dormindo na sua cama, mas parece haver um acordo silencioso com a bandidagem. A segurança nos prédios da zona sul é precária, desleixada, ainda assim não há assaltos às residência­s.

A comida sempre subiu de elevador no Rio, até que a ifood mandou todo mundo finalizar os pedidos na calçada. Deu em ataques de pelanca dos privilegia­dos que perderam um privilégio mesquinho.

Na Barra da Tijuca, o youtuber Rica Perrone subiu nas tamancas porque, na sua avaliação, trabalha com algo mais importante do que transporta­r alimentos e não poderia descer em hipótese alguma.

Vá lá, não é só no Rio. Estamos no país do “sabe com quem está falando?”.

Em Brasília, um engenheiro deu carteirada, disse ser juiz e, com o dedo em riste, ameaçou “foder com” a vida do motoqueiro que pedia um código para fechar o pedido.

Rica admitiu ter atirado a comida no entregador. Já o cabo Roy, lá da Vila Valqueire, no Rio, atirou foi um pipoco no insolente Nilton Ramon, que teve o desplante de não lhe ser subservien­te.

Parece extremo demais até para um policial carioca que vive de esculachar gente de pele escura.

Parece que a selvageria das redes sociais, em que opiniões divergente­s descambam em insultos e ameaças, está escapando para o mundo real.

Parece que, no mundo material, a bala de revólver é feita de chumbo e pode matar uma pessoa, mas quem liga?

Pessoa? Não, só o moleque abusado que não quis pegar o elevador e ainda filmou tudo com o celular.

É o retrato de uma cidade que estrebucha para não largar mão das relações sociais estacionad­as no século 19, quando o Rio era a capital de um império escravocra­ta

 ?? Himanshu Sharma/afp ?? ARTISTA HINDU REPRESENTA A DEUSA KALI DURANTE CELEBRAÇÃO DO FESTIVAL ‘MAHA SHIVARATRI’, EM PUSHKAR, NA ÍNDIA
Festa dedicada à Shiva, divindade do hinduísmo, é tida pelos devotos como um momento de renovação espiritual
Himanshu Sharma/afp ARTISTA HINDU REPRESENTA A DEUSA KALI DURANTE CELEBRAÇÃO DO FESTIVAL ‘MAHA SHIVARATRI’, EM PUSHKAR, NA ÍNDIA Festa dedicada à Shiva, divindade do hinduísmo, é tida pelos devotos como um momento de renovação espiritual

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