‘Contado pela Minha Mãe’ mostra concisão exasperante na MITSP
TEATRO Contado Pela Minha Mãe ★★★★★
Direção: Ali Chahrour. Com: Hala Omran, Laila Chahrour e Abbas Al Mawla. Sesc Vila Mariana - r. Pelotas, 141, São Paulo. 12 anos. Sáb. (9), às 21h. R$ 25 a R$ 50
Chega a ser exasperante a simplicidade radical do espetáculo “Contado pela Minha Mãe”. O cenário se resume a um palco praticamente nu, cadeiras pretas e algumas pessoas, vestindo roupas comuns, que ocupam um tablado central, também negro.
A aparente limpeza da cena, que se despe de qualquer artifício que possa soar supérfluo, é o primeiro elemento que salta aos olhos do espectador da peça, encenada no Sesc Vila Mariana, e é um dos destaques da nona edição da MITSP, a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo.
Não que palcos despidos destoem do que se vê no teatro contemporâneo. Ao contrário, a recusa ao artificialismo está na ordem do dia e cenários há muito deixaram de ser pano de fundo ou apêndice decorativo para as ações.
Mas a criação do libanês Ali Chahrour —mesmo que ancorada em seu tempo e de acordo com as produções de seus pares— surpreende e intriga pela força do que consegue mobilizar. Como é possível fazer tanto com tão pouco?
As cenas que o coreógrafo e dançarino nascido em Beirute desenha são impactantes. Uma atípica e exitosa combinação de canções, reminiscências, tradições e performance. Apresentada há quatro anos no Festival de Avignon, um dos mais importantes do mundo, a obra faz parte de uma trilogia sobre o amor.
Para criar, Chahrour se ampara em dramas próximos. Primeiro, conta a história de sua tia, Fatmeh, que passou anos procurando pelo filho desaparecido, Hassan, recusando-se a aceitar sua perda enquanto não lhe trouxessem um corpo. Depois, também traz à cena a prima, Leila Chahrour, cujo filho quer partir para se tornar um mártir.
Do emaranhado de conflitos que atravessa o Líbano atual, surgem mulheres comuns e a singularidade de seus afetos. O som contribui para o resultado alcançado por “Contado pela Minha Mãe”. Executada ao vivo pelo duo Two or The Dragon e acompanhada pela voz da atriz síria Hala Omran, a trilha combina sonoridades que associamos imediatamente à cultura árabe, tais como a ênfase no canto e no ritmo, com ruídos que causam estranheza, barulhos de cidade grande e de guerras.
É como se pudéssemos ouvir como a morte vai arruinando o espírito de um povo que gostava de estar junto e festejar. Pelas canções conhecemos os dramas das mães; pelos movimentos que os intérpretes executam no palco somos arrancados do drama e lançados ao trágico.
Todos querem convencer Fatmeh que seu filho Hassan foi morto na Síria. Entregamlhe os pertences do rapaz — um celular e um suéter— e organizam um funeral. Mas ela se recusa a enterrar uma peça de roupa no lugar do corpo. Afasta com um movimento de cabeça aqueles que querem prestar condolências.
O gesto brusco embasa a coreografia e atravessa todos os corpos. É um movimento que vai e volta, como em uma lembrança de sua insubmissão.
Antígona paira como um fantasma. Na tragédia grega de Sófocles, ela é a mulher que se recusa a aceitar as ordens do poder estabelecido e insiste em dar uma sepultura ao corpo do irmão, morto durante uma batalha sangrenta e proibido de ser enterrado.
Para o filósofo sul-coreano Byung-chul Han, autor do festejado “A Sociedade do Cansaço”, vivemos em uma época pós-narrativa. Na contemporaneidade, perdemos a capacidade de criar e apreciar narrativas significativas, constantemente inundados pelos excessos e emoções fabricadas pelo “storytelling”, vidrados na troca acelerada de informações dos nossos smartphones.
Diante de um mundo em que as histórias são construídas para vender e fazer circular mercadorias, onde tudo se tornou arbitrário e fugaz, Ali Chahrour é cirúrgico.
Na costura arguta que faz de elementos antagônicos — vida e morte, particular e coletivo, luto e alegria—, cada detalhe está carregado de uma intenção e de um propósito.
Nada em sua encenação , porém, soa excedente. E é dessa contenção extrema que alguma coisa explode na peça.