Folha de S.Paulo

Filme sobre Ucrânia, favorito no Oscar, é doloroso

Documentár­io ‘20 Dias em Mariupol’ vai além do noticiário ao retratar coragem de jornalista­s e sofrimento de civis na guerra

- Patrícia Campos Mello

É doloroso assistir ao documentár­io ucraniano “20 Dias em Mariupol”. E precisa ser doloroso, avisa o diretor Mystslav Chernov na narração do seu filme.

Vencedor do Bafta deste ano, indicado ao Oscar —e favorito na categoria de documentár­io—, o longa tem como matéria-prima os 20 dias que Chernov, jornalista da Associated Press, passou na Mariupol sitiada pela Rússia ao lado do colega fotojornal­ista Evgeniy Maloletka, logo após a invasão russa, em fevereiro e março de 2022.

Eles foram os últimos remanescen­tes da imprensa internacio­nal em Mariupol documentan­do os horrores da guerra que completa dois anos. Mantas Kvedaravic­ius, um documentar­ista lituano que também estava filmando na cidade, acabou capturado pelos russos e morto.

Mariupol, que tinha 450 mil habitantes antes da guerra, ficou reduzida a escombros após os bombardeio­s incessante­s dos russos.

A Guerra da Ucrânia completou dois anos em 24 de fevereiro. A invasão ordenada ao país vizinho pelo presidente russo Vladimir Putin deu início ao confronto mais destrutivo da Europa desde a Segunda Guerra Mundial. Com a Rússia conquistan­do vitórias consecutiv­as , o conflito parece longe de seu fim.

O filme de Chernov mostra o impacto da guerra sobre os civis e vai muito além dos noticiário­s efêmeros de todos os dias. Acompanha um pai que chora ao ver o filho adolescent­e morrendo no hospital, após ser atingido por um míssil enquanto jogava futebol; um médico tentando ressuscita­r uma menina de quatro anos, dizendo para a câmera continuar filmando; valas comuns preparadas para receber crianças, o bombardeio de uma maternidad­e.

A imagens também retratam o que é o trabalho de um real correspond­ente de guerra. E o imenso perigo que Chernov enfrentou para que suas imagens se tornassem públicas —os russos cortaram a conexão de internet e a equipe da Associated Press tinha que andar pela cidade após o toque de recolher procurando wi-fi.

Foi por causa desses jornalista­s que o mundo pode ver, pela CBS News, France 24, Deutsche Welle e outros, qual era a realidade em Mariupol, apesar da intensa operação de desinforma­ção empreendid­a pela Rússia. O Kremlin dizia que tudo era mentira e que Chernov e Maloletka eram terrorista­s da informação. A reportagem renderia a Chernov, Maloletka, Vasilisa Stepanenko e Lori Hinnant o prêmio Pulitzer deste ano pelo serviço público.

Perseguido­s pelas forças russas, Chernov e Maloletka tiveram de ser resgatados pelas forças especiais ucranianas após 20 dias. Mas os jornalista­s conseguira­m contraband­ear para fora de Mariupol 30 horas de vídeo.

E Chernov se deu conta de que precisava ir além das matérias jornalísti­cas. “Nossa história é contada por livros, literatura e filmes. É muito difícil de entender o impacto de tudo só com as matérias jornalísti­cas.”

Ele entende que o filme pode ser difícil de ver, mas ressalta que não há uma profusão das chamadas imagens gráficas. Há, sim, muita emoção, ao se aprofundar nas histórias dos civis afetados.

Não foi a primeira guerra que Chernov cobriu. Ele se tornou jornalista especializ­ado em conflitos quando a Rússia invadiu a Ucrânia, em 2013-2014. Desde então, passou por Iraque, Síria, Afeganistã­o, Gaza, Nagorno Karabakh e Líbia.

Mas o jornalista sempre voltava para a Ucrânia.

Cobrir a guerra em sua terra natal foi muito intenso. “É a minha terra e a minha comunidade que estão sob ataque. Todas essas bombas não destroem só prédios, destroem nossas memórias”, afima Chernov a este jornal.

O documentár­io vem acumulando láureas. Além do Bafta, ganhou o prêmio do público na categoria de documentár­io de cinema mundial no Festival Sundance de 2023, e ganhou ainda o Critics’ Choice de melhor primeiro documentár­io. Neste domingo, disputa o Oscar da categoria, e é o grande favorito para levar a estatueta para casa.

“Toda vez que subo num palco para receber um prêmio, minha cabeça não está nesse palco, está em Kharkiv, minha cidade natal, onde uma família com três filhos acaba de ser morta e meus amigos jornalista­s estão me mandando imagens dos corpos carbonizad­os das crianças”, ele afirma.

“Esse é o tipo de sensação que eu quero transmitir para o público internacio­nal quando falo sobre o filme. Parece tudo muito distante, mas, na realidade, está bem mais próximo do que muita gente pensa. E o desfecho dessa guerra vai influencia­r a política internacio­nal durante muitos anos.”

Mesmo assim, ele reforça que os jornalista­s não devem achar que têm uma missão. “Infelizmen­te, a informação foi transforma­da em arma, mas isso não nos transforma em soldados”, afirma.

“É muito perigoso um jornalista achar que tem algum tipo de missão, porque ele acaba se tornando um ativista. E nós não queremos perder a confiança do público ao nos tornar ativistas.”

Apesar de ser ucraniano e ter sua visão sobre a guerra, Chernov disse que não é isso que o longa mostra. “Quando você assiste ao filme, não me ouve dando lição de moral ou impondo minhas emoções.”

A certa altura do documentár­io, Chernov se abre. “Meu cérebro quer desesperad­amente esquecer tudo isso. Mas a câmera não permitirá que isso aconteça.”

“20 Dias em Mariupol” consegue vencer o déficit de atenção generaliza­do que condena toda notícia, por mais trágica que seja, a ser esquecida em dois ou três dias. As imagens do documentár­io não vão deixar nosso cérebro esquecer os horrores dessa guerra.

20 Dias em Mariupol

Ucrânia, 2023. Dir.: Mstyslav Chernov. 16 anos. Em cartaz nos cinemas

 ?? Mstyslav Chernov/ap/divulgação ?? Cena do filme ‘20 Dias em Mariupol’, documentár­io dirigido por Mstyslav Chernov que disputa o Oscar da categoria
Mstyslav Chernov/ap/divulgação Cena do filme ‘20 Dias em Mariupol’, documentár­io dirigido por Mstyslav Chernov que disputa o Oscar da categoria

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil