‘As 4 Filhas de Olfa’ espelha vida real com maior preocupação estética do que ética
CINEMA As 4 Filhas de Olfa ★★★★★ França, Tunísia, Alemanha, Arábia Saudita, Chipre, 2023. Dir.: Kaouther Ben Hania. 14 anos. Em cartaz nos cinemas
No cinema contemporâneo, chama-se reflexibilidade uma característica do documentário que consiste em espelhar a presença da câmera e do cinegrafista ao longo do filme.
Na origem dessa prática está um problema ético, que envolve deixar claro ao espectador que documentar não equivale a mostrar a verdade como um fenômeno. Existe ali todo um aparato, a direção, a luz, a equipe. A objetividade da câmera é muito relativa, e depende do que o filme pretende dizer sobre aquele objeto.
Toda essa introdução desajeitada visa levar ao espelhamento, que em “As 4 Filhas de Olfa” tem uma finalidade mais estética do que ética. Isso já se anuncia no belo plano de abertura, em que uma claquete entra em cena, rompendo o preto do cenário e tapando a visão da cena familiar em que Olfa está acompanhada das filhas. A voz da diretora se sobrepõe à imagem e anuncia a intenção de narrar a história familiar já no título.
Das quatro filhas de Olfa, as duas mais velhas, Gofrana e
Rahma, estão desaparecidas. Sua ausência será suprida por duas atrizes. As duas filhas representarão a si mesmas. Estamos diante, então, de uma representação, como no teatro. A diretora, Kaoulter Ben Hania, não esconde isso. Inclusive ela própria entra em cena, como um duplo de Olfa.
Em meio às durezas da vida, dos homens infames, dos estupros que acontecem ali mesmo na Tunísia, de onde nos chega este indicado ao Oscar de melhor documentário, Olfa vai à Líbia para trabalhar.
Todo o tempo a família —o que resta dela— é assombrada pelo fantasma religioso. Elas são constrangidas pelos religiosos radicais, muçulmanos, a usar véu sob pena de punição.
Mas a vida futura rebate sobre a presente, e a religião se mostra tal qual é, um instrumento de poder, que atinge as mulheres com toda força. Em um momento, Rahma está tão convencida de ser uma pecadora que passa a se chicotear.
Nessa altura do filme, e dado que a Rhama e a Ghofrane que entram em cena são atrizes, o espectador pergunta onde, afinal, foram parar as duas outras filhas, as mais velhas. Essa é, diga-se, a grande sacada deste documentário.
Na revelação, preparada sem alarde, está boa parte do encanto deste “biodoc”, em que a reflexibilidade joga papel alternativo. É possível que o sistema esteja um tanto desgastado, mas desde o início revela um cuidado nos detalhes seja da narrativa, seja no arranjo dos planos ou na direção dessas atrizes-personagens.