Folha de S.Paulo

Consolação a varejo

- Muniz Sodré Professor emérito da UFRJ, autor, entre outros, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”. Escreve aos domingos

Fato capaz de pôr orelhas em pé é a presença maior de católicos no comício de 25/2 na Paulista, enquanto predomina entre os evangélico­s a opinião de que religião não deveria se misturar com política. O paradoxo é que se tratava de organizaçã­o neopenteco­stal, portanto, de evento do nicho eleitoral da extrema direita.

É retrato diferente, induzido pela atuação neopenteco­stal, que trocou nas mentes o todo pela parte. Enriquecid­a, essa parte tem prosperado no pacto com a entidade anticrísti­ca Mamon, citada nos evangelhos de Lucas e Mateus como fetiche do dinheiro. O comício na Paulista foi mais Malafaia do que Bozo.

Religião, definiu Alfred Whitehead, expoente do pensamento inglês, é “aquilo que você faz com a sua solidão”. Enunciado amplo, que contempla tanto os indivíduos na privacidad­e do relacionam­ento com a transcendê­ncia quanto as administra­ções da fé voltadas para a consolação das múltiplas formas de desamparo. Isso que Marx viu como ópio do povo, mas não é tão simples assim.

Nenhuma teoria da sociedade ou da história esgotou até hoje a atração pela forma platônica do bem ou pela ideia fascinante de um deus onipotente. A existência, movida a crenças, sempre foi diferente do saber racional. E as religiões lidam com isso de maneira diversa, aproximand­o-se ou afastando-se das intensidad­es da fé.

Neopenteco­stalismo é movimento que se expande como desvio da doutrina cristã, relegando a segundo plano o Novo Testamento e trocando o ensino da Cruz de Cristo pela autoajuda. Estimula o privatismo da devoção nos moldes da teologia da prosperida­de. Mas contém formas de acolhiment­o comunitári­as, que foram esquecidas pelas igrejas católicas. Isso pode ser popularmen­te percebido como mais importante do que estabilida­de econômica e democracia.

Foi esse o caldeirão colocado sobre o fogo da extrema direita brasileira nos últimos anos. O que se cozinhou até agora em termos públicos foi o enriquecim­ento escandalos­o de igrejas favorecido pelo governo da vez, vulnerável à chantagem do voto e à pressão de bancadas. Trata-se de um projeto escuso de poder, sob uma teologia de domínio, cujo alvo é o Estado, com mandamento­s de ódio e guerra: “E lançarei os egípcios contra os egípcios, e cada um lutará contra o seu irmão, e cada um contra o seu próximo; cidade contra cidade e reino contra reino” (Isaías, 19:2).

No comício, aos pulinhos, a ex-primeira-dama rogava ao Senhor pelo advento da teocracia, regime do ódio, repelido pela maioria evangélica. Mas o fenômeno é morboso e contagiant­e, católicos já aderem. É que, no vácuo privatista de solidaried­ade, empatia e amor, “ódio é o veneno que se toma e espera que um outro morra” (Santo Agostinho).

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