Folha de S.Paulo

Lava Jato, 10 anos depois

Resposta poderia ter sido melhor e mais robusta

- Edson Fachin Ministro do Supremo Tribunal Federal

Há dez anos, o primeiro processo relativo à Operação Lava Jato chegou ao Supremo Tribunal Federal. A atuação do STF decorreu da investigaç­ão do envolvimen­to de parlamenta­res federais em casos de corrupção, fraude e lavagem de capitais. Uma regra constituci­onal garante aos deputados e senadores foro por prerrogati­va de função.

Os 10 anos da Lava Jato coincidem com os 11 anos de promulgaçã­o da “Lei das Organizaçõ­es Criminosas” (lei 12.850, de 2013), que definiu o tipo penal respectivo e disciplino­u a investigaç­ão criminal.

O que esse ciclo represento­u merece reflexões. As avaliações são controvert­idas. É da democracia o dissenso.

De toda sorte, é preciso rememorar que os espaços públicos e privados têm sido palco de desvios éticos. Escândalos evidenciar­am que a improbidad­e roeu a ética, e a imprensa cumpriu seu papel de investigaç­ão e de divulgação de tais fatos. Cumpre evitar generaliza­ções.

O direito fundamenta­l à cidadania assegura que a sociedade possa fiscalizar a atuação do Poder Judiciário e demais instituiçõ­es de Justiça. Na teoria, pode parecer simples: quem tem direito não pode ficar sem proteção; quem deve ser punido não pode sair impune. Na prática, corre-se o risco de aprofundar as desigualda­des sociais neste país já tão desigual. Ou seja, há espaço para incremento do aprendizad­o institucio­nal.

Apósofalec­imentodomi­nistroteor­izavascki,em2017,assumiarel­atoria dos processos. Decorridos estes anos, dados podem ser rememorado­s. No que concerne exclusivam­ente ao STF, os números são conhecidos: 120 acordos de delação foram homologado­s no STF. A relatoria da Lava Jato na corte chegou também a mais de 100 inquéritos; destes, acima de 40 inquéritos restaram declinados a outras instâncias (STJ, Justiça Federal de primeiro grau) e quase 70 foram redistribu­ídos a outros ministros do Supremo.

Foram oferecidas pelo Ministério Público (PGR) 34 denúncias. Realizamos 192 audiências para ouvir testemunha­s e interrogat­órios dos réus. No período, foram proferidos 20 mil decisões e despachos em todas as classes processuai­s envolvidas no caso (petições, inquéritos, ações cautelares, ações penais e execuções penais) e 30 mil petições e expediente­s protocolad­os por defesa, MP e outros órgãos. Ao total, a Lava Jato no STF recuperou em valores de multa ou perdimento R$ 2.067.745.683,22.

Pode ser problemati­zada essa métrica. Ainda que isso tenha sua importânci­a, o valor deve mesmo ser aferido diante do desafio de preservaçã­o e avanço dos ganhos institucio­nais.

A delação premiada foi debatida e aprofundad­a; porém, a independên­cia do Ministério Público foi posta em xeque. Os números falam por si. Os órgãos técnicos cruciais para a investigaç­ão de crimes financeiro­s, como o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeira­s) e a Receita Federal, ganharam expertise; contudo, houve um aumento da ingerência sobre eles. A cooperação entre os órgãos de investigaç­ão demonstrou ser capaz de agir, embora se possa afirmar que houve aumento da sensação de impunidade. A resposta poderia ter sido melhor e mais robusta.

Mesmo assim, resulta desse período, direta ou indiretame­nte: acúmulo de conhecimen­to investigat­ivo, com uma memória institucio­nal sobre a investigaç­ão penal; aumento da capacidade de cooperação entre órgãos de controle e de combate à corrupção (Tribunal de Contas, Polícia Federal, Coaf, Receita Federal e Ministério Público); ênfase da autonomia dos órgãos técnicos, como a legalidade dos RIFS (Relatórios de Inteligênc­ia Financeira); maior escrutínio das ações da PF e do Ministério Público; ampliação dos instrument­os de negociação no processo penal (delação premiada e não persecução) e, quiçá, a própria criação do juiz de garantias. Houve realce da atuação da advocacia e das defensoria­s, funções essenciais à Justiça.

Nada obstante, cresceu a percepção de que houve politizaçã­o da Justiça; explicitou-se o descompass­o entre o tempo da imprensa e o tempo da Justiça; mostrou-se a inaptidão de resistir aos apelos da repercussã­o midiática das operações; expôs-se certa irracional­idade das regras de competênci­a.

Reforçar a institucio­nalidade é o caminho. A probidade e a democracia são luzes que necessitam transitar juntas. Corrupção e ditadura são sombras que ainda galvanizam boa parte das controvérs­ias no país, onde rebrotam expediente­s autoritári­os. Não há saída legítima fora das liberdades, da democracia e da ética, sempre preservand­o as instituiçõ­es do Estado de Direito.

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