Folha de S.Paulo

Fórmulas prontas do jornalismo

Militares se irritam, montadoras investem e tudo continua como antes

- José Henrique Mariante

Conrado Hübner Mendes, com certa frequência, cutuca jornalista­s. A categoria tem um papel coadjuvant­e em seus artigos, mas apanha de quando em quando como os luminares do Judiciário, os protagonis­tas em geral. Proximidad­e pouco republican­a com o poder, condescend­ência, falta de isenção e espírito crítico, vaidade. As acusações são pesadas, mas nada que jornalista­s não estejamos acostumado­s. A acidez dos comentário­s, por outro lado, reflete, na parte cheia do copo, a constataçã­o da necessidad­e de um jornalismo profission­al independen­te. Sem ele, o atual estado de coisas prevalece ou tem chance menor de ser alterado. Poderia, deveria ser diferente.

Na última semana, Conrado mirou uma cobertura específica, a dos militares do país, exemplo de “servilismo jornalísti­co”, de acordo com a análise calcada em uma curiosa observação empírica: a enorme quantidade de títulos da imprensa nacional que dão conta de algum tipo de irritação das Forças e dos generais. A lembrar do tamanho da vara, em uma reverência anacrônica, não o da onça.

Os enunciados listados na coluna aparecem em uma busca simples na internet, “militares + se irritam.” Há de tudo e de todos, da semana e de há muitos anos. Conrado tece suas teorias, a discussão aqui não entrará no mérito, mas toma a liberdade de acrescenta­r mais uma: e se o aparente servilismo for efeito colateral de algo mais banal, uma inconfessá­vel indigência jornalísti­ca, fórmula pronta, como tantas que habitam as Redações desde tempos imemoriais.

A coisa fica ainda pior quando se percebe dois movimentos de repetição sobreposto­s. O que se especula, por servilismo ou indigência, e o que é imposto pelo mecanismo de busca do Google: da esquerda à direita, da Folha à Gazeta do Povo, do Brasil 247 a O Antagonist­a, os títulos sobre um mesmo assunto se repetem, como se todos estivessem escrevendo a mesma coisa. Quando não estão efetivamen­te escrevendo a mesma coisa.

Também na quinta-feira (8) da coluna, Folha ,Ogloboeo Estado de S.paulo deram manchetes de seus impressos para os bilhões de investimen­tos anunciados por montadoras. Algumas cifras eram divergente­s, o destaque para eletrifica­ção ou carros híbridos variava aqui e ali, mas a notícia era a mesma. Na internet, os títulos eram os mesmos, não apenas no dia ou na semana. Assim como militares sempre se irritam, montadoras sempre investem. A busca simples “montadoras + investem” revela outra fórmula pronta das Redações, com enunciados idênticos, ainda que separados por anos.

Não que não fosse notícia os pacotes de duas das maiores marcas do país no espaço de dias. Mas é o negócio de sempre, que a imprensa repete sem constrangi­mento ou ponderação. E sempre há uma a fazer.

Antes das manchetes, uma análise na Folha mostrava que o investimen­to das empresas não era exatamente questão de opção. Quem quiser permanecer no mercado, nos próximos anos, terá que cumprir novas e custosas regras de emissão de poluentes. Outro artigo mostrava que o montante estava longe de ser recorde. Sem falar dos subsídios, que tornam complexa a apreciação sobre o real retorno dos investimen­tos.

É importante notar que a fórmula pronta, apesar do caráter pretensame­nte prosaico, pende sempre para o lado que interessa ao agente da informação. Conrado faz aguda observação sobre a posição da imprensa em relação

aos militares. Impression­a como a indústria automobilí­stica navega com tranquilid­ade pela mídia e pelos governos.

O jornalismo precisa de alguma sofisticaç­ão. Fórmulas salvam o dia, não muito mais.

Come-cotas

Campeão de reclamaçõe­s da semana, o editorial “Cotas sociais, não raciais” é um daqueles momentos em que a Folha gera mais dúvida do que certeza em parte de seus leitores.

O jornal que faz campanha para angariar assinantes mulheres com a oferta de um livro de bell hooks, celebra a liberação do aborto na Constituiç­ão francesa, inicia a publicação de uma oportuna série sobre direitos reprodutiv­os, inovou com um programa de trainees para profission­ais negros e adota cotas para seu próximo treinament­o, voltado à economia, não conversa com o jornal que se opõe à ação afirmativa para pretos, pardos e indígenas nas universida­des.

Na esteira da polêmica sobre os estudantes que tiveram matrícula recusada na USP, a

Folha expôs seus argumentos contra as cotas raciais, assim como fizeram alguns colunistas. Apesar dos comentário­s e da gritaria nas redes sociais, o jornal não se preocupou em dar espaço ao contraditó­rio e às críticas. Apenas no sábado (9) o Painel do Leitor contemplou o assunto, talvez pelo fato de o ombudsman ter notado a lacuna em crítica interna.

Essa Folha que não se abre ao debate, como outrora, também é estranha aos leitores.

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