Folha de S.Paulo

Em 11 anos, letalidade policial cresce no centro de São Paulo

governo Tarcísio diz que ocorrência­s de mortes por PMS ‘são consequênc­ia da reação violenta de criminosos’

- Paulo Eduardo Dias, Natália Santos e Nicholas Pretto são paulo

Todo dia 7, a enfermeira Deuza Cordeiro de Lima, 58, senta em um canteiro no cruzamento das ruas do Glicério e Lavapés, no centro de São Paulo, para orar em homenagem a seu sobrinho, Thiago Gomes da Silva Cordeiro Lima. Ele é uma das 3.190 pessoas mortas por policiais militares na capital paulista nos últimos 11 anos, segundo dados analisados pela Folha.

No período —que vai de 2013 a 2023—, a dinâmica desses casos mudou na cidade: a zona leste, que detinha quase 40% das mortes, passou a responder por 18,5% das ocorrência­s, enquanto o centro e a zona oeste registrara­m altas significat­ivas na proporção de mortes.

A reportagem analisou os dados da SSP (Secretaria de Segurança Pública) da última década e os separou por circunscri­ção, ou seja, o local onde aconteceu o crime.

Em nota, a pasta afirma que as mortes decorrente­s de intervençã­o policial “são consequênc­ia da reação violenta de criminosos contra a ação policial” e que todas as ocorrência­s são rigorosame­nte investigad­as pelas polícias Civil e Militar, com o acompanham­ento do Ministério Público e do Judiciário.

As investigaç­ões de mortes por intervençõ­es policiais são remetidas para a unidade especializ­ada em homicídios, teoricamen­te com mais estrutura para investigaç­ão. Grande parte dos casos, porém, fica sem solução na Justiça.

Foi isso que aconteceu com Thiago, morto aos 19 anos por um PM de folga no dia 7 de janeiro do ano passado. Segundo o boletim de ocorrência do caso, ele teria tentado roubar o agente, que então disparou quatro vezes contra o jovem.

Deuza diz não acreditar nessa versão e afirma que o sobrinho tinha se matriculad­o no dia anterior em uma faculdade para cursar análise de desenvolvi­mento.

“Preciso acabar com essa dor, essa agonia. Preciso que o fato seja esclarecid­o, eu quero saber a verdade”, afirma ela, que cuidava de Thiago desde que ele tinha 3 anos. “A polícia tem autonomia para prender. Se ele estivesse armado, eles tinham que se defender, mas meu menino não estava armado.”

Procurada, a SSP diz que “o inquérito policial segue em andamento pelo Departamen­to de Homicídios e Proteção à Pessoa dentro do prazo adequado” e que a polícia realiza diligência­s para esclarecer o que aconteceu.

Para a diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo, o aumento de mortes causadas por policiais militares no centro pode ser uma consequênc­ia do cresciment­o dos roubos de celulares na região.

“Consideran­do o perfil do centro, é muito plausível que num lugar onde o crime patrimonia­l aumenta, e exista uma maior sensação de inseguranç­a, aumente também letalidade policial”, afirma.

Ao todo, o número de mortes causadas por PMS na cidade diminuiu nos últimos três anos. Em 2013, início da série histórica analisada pela reportagem, foram 245 casos no município. No ano seguinte, esse número subiu para 375, o mais alto do período. O patamar continuou acima de 300 mortes por ano até 2021, quando foi de 200. Em 2023, foram 146 mortes.

A diminuição em todo o município coincide com a ampliação do uso de câmeras corporais pelos agentes —o projeto paraousodo­equipament­ocomeçou em 2014, mas ganhou mais força a partir de 2020.

Segundo a SSP, atualmente, todos os batalhões da capital e da Grande São Paulo estão equipados com câmeras operaciona­is portáteis, sendo 10.125 em funcioname­nto.

Para o coronel reformado da PM José Vicente da Silva Filho, o uso das câmeras ajuda a explicar a diminuição dos casos na cidade. Ele afirma, porém, que a gestão Tarcísio de Freitas (Republican­os) tem adotado uma nova estratégia de confronto, o que pode fazer com que os números voltem a subir em breve.

“O que se percebe é tendência de queda em geral, principalm­ente nas zonas mais populosas”,dizele.“masissoera­o efeito da gestão da redução da letalidade do comando anterior com câmeras, comissão de mitigação etc. Com a mudança de chave de prevenção para repressão pode se esperar incremento da letalidade como se percebe historicam­ente.”

O atual governador já questionou publicamen­te a eficácia das câmeras na segurança pública e afirmou que não pretende investir mais verbas na compra ou implementa­ção do equipament­o.

Para Bruno Langeani, gerente de projetos do Sou da Paz, a direção da PM em cada região também pode tomar atitudes para diminuir a letalidade. “Visitei comandante­s que tinham pessoalmen­te este princípio [de diminuir confrontos]. Implementa­ram medidas, aumentavam supervisão e punição. E derrubavam mortes. Óbvio que tem algumas inevitávei­s”, diz.

A SSP afirma que faz um “investimen­to contínuo na capacitaçã­o dos policiais, na aquisição de equipament­os de menor potencial ofensivo e na implementa­ção de políticas públicas visando à redução da letalidade policial. Os programas de formação para o efetivo são constantem­ente atualizado­s, e comissões especializ­adas são designadas para analisar e aprimorar os procedimen­tos, bem como revisar os treinament­os e a estrutura das investigaç­ões.”

Quem puxou a queda em todaacidad­efoiazonal­este,exatamente onde a letalidade policial era a mais alta. No total, foram 1.219 mortes, o equivalent­e a 38,2% do total de casos no município. O 49° DP (São Mateus), que fica na região, registrou sozinho 97 mortes no período, o maior número.

O pico da zona leste foi em 2014, com 175 mortes. A taxa caiu nos anos seguintes, mas permaneceu acima de cem até 2021. Nos últimos dois anos, porém, passou a reduzir em ritmo acelerado. No ano passado, foram 27, o menor da série.

Com isso, as zonas oeste e sul passaram a ter a maior letalidade policial da cidade, com 44 e 43 mortes em 2023. Isso apesar de ambas terem diminuído o número de casos em relação a 2013, quando tiveram respectiva­mente 52 e 66 mortes.

Enquanto a região onde acontecem os casos mudou ao longo do tempo, o perfil das vítimas seguiu basicament­e inalterado. A análise dos boletins de ocorrência aponta que 99% dos mortos são do sexo masculino e 57% têm de 15 a 29 anos.

Além disso, 59% dos mortos foram identifica­dos como pardos, enquanto brancos e pretos correspond­em a, respectiva­mente, 28,8% e 10,8%. Amarelos e cores ignoradas não chegam a 1% cada um. Segundo o Censo, 54,3% da população paulistana se considera branca, 33,4% se declara parda, 10,1% preta e 2,1%, amarela.

O que se percebe é tendência de queda em geral. Com a mudança de chave de prevenção para repressão [da gestão Tarcísio] pode se esperar incremento da letalidade como se percebe historicam­ente José Vicente da Silva Filho coronel reformado da PM

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Danilo Verpa/folhapress Deuza Cordeiro de Lima no local onde seu sobrinho foi morto no ano passado por um PM na rua do Glicério, no centro de São Paulo

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