Folha de S.Paulo

Ficção global

O velho dito ‘não julgue o livro pela capa’ foi posto do avesso

- Antonio Prata Escritor e roteirista, autor de “Por Quem as Panelas Batem”

“Ficção Americana” é um filme da Amazon Prime, escrito e dirigido por Cord Jefferson, sobre o qual darei spoilers a torto e a direito. Estão avisados.

Thelonious Ellison é um romancista norte-americano, negro e extremamen­te talentoso, que está patinando na carreira. Os editores brancos e o público, em geral, não acham seus livros “negros o suficiente”. Por “negros o suficiente” eles entendem histórias sobre existência­s marginais em meio à violência, ao tráfico, ao desespero, narradas com muita gíria e palavrão. Fosse no Brasil, incluiriam também samba, futebol, capoeira, funk, sensualida­de e malemolênc­ia.

Com o saco na lua, Thelonious resolve fazer uma pegadinha. Escreve um livro ultraclich­ê, gabaritand­o todos os lugares-comuns da “negritude” (as aspas são muito importante­s neste texto), usando um patuá afro-americano de gangsta-rapper, com calculados erros de ortografia, tipo “yo-yo-madah-fuckah!”. Acredita que, ao lerem tal caricatura da “literatura negra”, os editores sentirão vergonha de suas demandas. Para sua surpresa, o livro é adorado, publicado e se torna um best-seller —ainda mais depois de seu agente inventar que Thelonious, sob um pseudônimo, é um perigoso foragido da Justiça.

A história tragicômic­a revela muito sobre certo lugar que as questões identitári­as ganharam no mercado e na cultura. Mascarada pela virtuosa desculpa de dar voz aos oprimidos e revelar as injustiças sociais, a desgraça se torna um produto “premium”, “gourmet”. Milionário­s dos Hamptons (a praia de Laranjeira­s, a Quinta da Baroneza da costa leste americana) vão levar o livro pra piscina, exibindo a seus pares o hype de estar “up-to-date” com as mazelas deste mundo.

Em tempos de narcisismo instagramá­tico, o velho dito “não julgue o livro pela capa” foi posto do avesso. A verdade agora é “julgue o livro pela contracapa”.

No lugar de serem avaliadas pelas qualidades estéticas, as obras passam a ser referendad­as pelas origens ou caracterís­ticas de seus autores. No meio de coisas boas que afloram quando a branquitud­e se torna um pouco mais porosa a quem não é dos seus, livros, músicas ou filmes medíocres são aplaudidos e premiados como obras-primas por virem de pessoas com histórias de vida difíceis. Ao tentar fugir do racismo/machismo/homofobia, tal atitude acaba por reforçá-los. Afinal, tão discrimina­tório como destratar o outro é tratá-lo com uma condescend­ência paternalis­ta.

“Ficção Americana” revela como, em vez de fazer do mundo um lugar mais justo e seguro par aos oprimidos, preferimos simplesmen­te expiara culpa aplaudindo­obras produzidas por eles. Vale mais —e dá bem menos trabalho— pra quem tá por cima da carne-seca comentar num jantar que assistiu a uma performanc­e “fortíssima”, “urgente”, “potente” e “visceral” de uma artista transou indígena ou negra doque move ruma palha pra combater o assassinat­o de travesti sou mitigara tragédia yanomami.“oque eu fiz em relação à operação escudo, em que apm paulista só matou menos gente do que no massacre do Carandiru?” “Ah, eu li Frantz Fanon.”

Esta operação de lavagem da culpa faz tão mal ao mundo quanto à arte. Agride, principalm­ente, os que parecem se beneficiar dela, pois os artistas aplaudidos pela culpa são privados de críticas sinceras, impedidos, assim, de se aprimorar no livre debate de ideias. Trocamos o mito da “democracia racial” pela falácia da “democracia cultural”.

Pra piorar: a direita, que não vê a realidade pelas lentes da culpa e sim tentando colocar a culpa nos outros, percebe a impostura, grita “o rei tá nu!” e faz com que aluta de séculos por igualdade, justiça e liberdade volte dez casas no tabuleiro. Mentira não é ferramenta pra justiça social. É só mentira.

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Adams Carvalho

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