Folha de S.Paulo

No fundo da alma

No Brasil, cada vez mais, confundem intensidad­e, garra, com violência, faltas e provocaçõe­s

- Tostão Cronista esportivo, participou como jogador das Copas de 1966 e 1970. É formado em medicina

A memória é diferente da lembrança. Esquecemos muitas coisas, geralmente as que não queremos lembrar, porém elas continuam guardadas na memória inconscien­te. De vez em quando, reaparece nos sonhos, nos atos falhos, às vezes disfarçado­s, encobertas pelo cotidiano. Outras vezes, lembramo-nos de alguns fatos que não foram exatamente como ocorreram, mas do jeito que gostaríamo­s que tivesse acontecido.

Quando escrevo e dou exemplos de fatos que presenciei sobre a história do futebol, corro o risco de, sem perceber, confundir detalhes, às vezes, traído pelo desejo que poderiam ter sido diferentes. No mesmo raciocínio, de vez em quando, leio e escuto histórias, de época em que estava presente, que não acontecera­m exatamente do jeito que foram narradas.

Há passagens na vida, boas ou ruins, que lembramos por terem sido marcantes, inesquecív­eis. Lembro-me da época que era professor de medicina da faculdade de ciências médicas de Minas Gerais e orientava os médicos residentes e alunos do último ano no hospital da Santa Casa de Belo Horizonte, na área de clínica médica.

Havia um doente portador de asma brônquica que não melhorava para nossa surpresa. Discutimos, pesquisamo­s a literatura, sem resultados. Resolvi ir ao hospital fora do horário para conversar com o paciente. Queria conhecer melhor o doente, e não apenas a doença. Sentei-me ao seu lado e batemos um papo. Após avanços e recuos, ele me disse mais ou menos isso: ninguém vai resolver o meu problema, pois no fundo da alma, não quero melhorar. Ficou claro. Pedi ajuda de um psicólogo e de um psiquiatra. Ele melhorou e teve alta.

Nelson Rodrigues dizia que sem vontade, sem alma, não se pode chupar nem um picolé. No futebol brasileiro, cada vez mais, confundem intensidad­e, garra, transborda­mento da alma com violência, excesso de faltas, reclamaçõe­s, provocaçõe­s, dentro e fora de campo. Espero que o Fla x Flu e o Atlético x América de ontem tenham sido jogados com muita intensidad­e, garra, beleza, técnica, sem confusões.

A decepção com a perda do Brasileirã­o do ano passado, quando o título parecia certo, dilacerou a alma do Botafogo. É preciso resgatá-la. Todo encontro é um reencontro com algo que vivemos e ou imaginamos. Se o Botafogo, no segundo jogo contra o Bragantino, se classifica­r para fase de grupo da Libertador­es, após vencer o primeiro por 2 x 1, poderá ser um marco na recuperaçã­o da autoestima da equipe.

Se isso não acontecer, o que não será uma grande surpresa, já que o Bragantino atua em casa e tem uma equipe do mesmo nível da do Botafogo, os torcedores, a comissão técnica e os dirigentes não deveriam ficar abatidos, decepciona­dos. Haverá muitas pedras pelo caminho. O Botafogo não pode se esquecer de que o time é bom, mas não possui um elenco do nível das principais equipes brasileira­s, como Flamengo, Palmeiras, Fluminense, Atlético-mg e Inter. A atuação espetacula­r do Botafogo no primeiro turno no Brasileirã­o do ano passado foi totalmente atípica.

Na primeira partida contra o Bragantino, Junior Santos fez dois belíssimos gols. O primeiro em uma arrancada em grande velocidade, conduzindo a bola e driblando alternadam­ente, com os dois pés até fazer o gol. No segundo, ele levantou a bola com o bico da chuteira e de voleio, quase de costas para o gol, acertou um chutaço.

Um grande time precisa unir a garra, a alma com os movimentos do corpo. A alma e o corpo andam juntos. O corpo fala primeiro. O corpo é o mensageiro da alma.

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