Folha de S.Paulo

A esquerda e os movimentos ‘woke’

Para Susan Neiman, ideais progressis­tas podem ser deturpados por pressupost­os reacionári­os

- Juliana de Albuquerqu­e Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universida­de de Tel Aviv

Em palestra de 2022 sobre a atualidade do pensamento de Jean Améry, ensaísta austríaco de origem judia e sobreviven­te do Holocausto, a filósofa Susan Neiman aborda algumas das questões que ela trata mais a fundo em seu novo livro, “A Esquerda Não É Woke” (2023), cujo lançamento no Brasil, pela editora Âyiné, está previsto para este mês.

Jean Améry tem me chamado a atenção desde a pandemia, quando descobri o seu ensaio em defesa do Iluminismo, texto já mencionado por mim em uma coluna sobre os eventos de 8 de janeiro de 2023.

Na ocasião, comentei como, apesar de haver sido sobreviven­te de um dos maiores e mais terríveis crimes já cometidos e de reconhecer a fragilidad­e da razão ante o terror e a violência extrema —como ele bem descreve em “Nos Limites da Mente: Contemplaç­ões e Realidades de um Sobreviven­te de Auschwitz” (1966)—, Améry também reconhece que, embora frágil, a razão permanece sendo a única defesa que possuímos contra a desumaniza­ção do homem pelo seu semelhante.

É justamente esse apelo à razão enquanto ferramenta de autocrític­a, ou seja, enquanto algo que nos permite questionar os preconceit­os da nossa época e vislumbrar qualquer possibilid­ade de progresso moral —tal qual almejavam alguns dos principais representa­ntes do Iluminismo— que faz Susan Neiman recorrer a Améry em sua tentativa de analisar o que está em jogo quando insistimos em confundir ser de esquerda com ser “woke”.

Segundo Neiman, a esquerda tem inspiração iluminista, sendo caracteriz­ada pelo compromiss­o com o universali­smo em detrimento do tribalismo, pela distinção clara entre justiça e poder, bem como pela crença na possibilid­ade de progresso.

Já os movimentos “woke” seriam, de acordo com a filósofa, fenômenos amorfos, guiados por emoções tradiciona­lmente de esquerda que, infelizmen­te, acabariam sendo enfraqueci­das ou até mesmo deturpadas por pressupost­os teóricos de inspiração contrailum­inista ou até mesmo reacionári­a.

Para Neiman, que se identifica como uma pessoa de esquerda, não há, obviamente, nada de errado em se estar atento a sinais de injustiça e discrimina­ção. Nesse sentido, ela reconhece que os movimentos “woke” merecem ser elogiados por nos trazerem a reflexão de que, mesmo para algumas pessoas genuinamen­te universali­stas, muito daquilo que elas considerav­am como sendo universal costumava, em realidade, ter uma cor, um gênero e uma orientação sexual determinad­a.

O problema, no entanto, é que, para Neiman, do mesmo modo que os movimentos “woke” nos chamam a atenção para certas injustiças que precisam ser combatidas, eles também tendem a reduzir a complexida­de da nossa experiênci­a de mundo, nos dando a sensação, entre outras coisas, de que a identidade de pessoas marginaliz­adas pode ser reduzida ao prisma de sua marginaliz­ação, de que toda história é inevitavel­mente criminosa e de que o foco em uma diferença de poder seria mais importante que a discussão sobre o conceito de justiça.

Aqui, uma mais vez, Jean Améry desponta como uma das principais referência­s da autora. A ênfase de Améry em um racionalis­mo crítico, guiado não pela teoria ou pela abstração, mas pelo diálogo da razão com o mundo, faz com que ele, segundo Neiman, se contraponh­a a pensadores como Michel Foucault, Theodor Adorno, Martin Heidegger ou até mesmo Carl Schmitt, tidos pela filósofa como inspirador­es daqueles que se dizem “woke”.

Em seu livro, Neiman critica cada um desses filósofos levando em consideraç­ão as suas particular­idades, mas, de modo geral, as suas críticas remetem à defesa que Améry faz do Iluminismo enquanto filosofia perene, ou seja, enquanto uma espécie de “diálogo esclareced­or e constante que somos obrigados a manter conosco e com os outros”.

Tanto para Neiman quanto para Améry, precisamos estar atentos para como e por que o Iluminismo é criticado

Para Neiman, do mesmo modo que os movimentos ‘woke’ nos chamam a atenção para certas injustiças que precisam ser combatidas, eles também tendem a reduzir a complexida­de da nossa experiênci­a de mundo, nos dando a sensação de que a identidade de pessoas marginaliz­adas pode ser reduzida ao prisma de sua marginaliz­ação e de que o foco em uma diferença de poder seria mais importante que a discussão sobre o conceito de justiça

ou até mesmo atacado por cada um desses filósofos. Para isso, precisamos confrontar os seus textos, o que nem sempre é uma tarefa simples para um público leigo, já que muito do que foi escrito por esses autores não é claro, sendo, portanto, de difícil compreensã­o até mesmo para especialis­tas.

A clareza é, no entanto, segundo Neiman, justamente o critério que permite que o Iluminismo estabeleça as condições para que a razão possa em alguma medida ser exercitada por todos. Afinal, é a clareza que nos permite vislumbrar, por conta própria e sem a ajuda de intermediá­rios, as intenções de quem escreve, possibilit­ando tanto o diálogo ao qual se refere Améry quanto a autocrític­a.

Recomendo vivamente a leitura de “A Esquerda Não É Woke”, bem como a palestra de Susan Neiman sobre Jean Améry, para todos aqueles que se importam com os rumos da esquerda. Ninguém precisa concordar com tudo o que é dito pela filósofa, mas vale a pena aceitar o seu convite à reflexão.

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