Folha de S.Paulo

Negacionis­mo de negacionis­mos

- Ricardo Araújo Pereira Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de ‘Boca do Inferno’

Fico satisfeito que o nível de excentrici­dade alemã de hoje é se vacinar 217 vezes

Um amigo liberal me dizia que a instituiçã­o do salário mínimo não fazia sentido. Devia ser o mercado a fixar os limites. Como todos os liberais, ele confia na sabedoria do mercado e desconfia do Estado, que só dá subsídios —essa praga.

Isso exceto quando, por circunstân­cias do sábio mercado, uma empresa de que ele gosta vai à falência. Aí ele exige que o Estado dê subsídio, que nessa altura se chama “bailout”.

O mercado costuma ter a sensatez de exigir coisas em inglês, para não passar vergonha. O argumento dele era o seguinte: “Se o salário mínimo é assim tão importante, por que fixá-lo apenas em pouco mais de R$ 1.400? Aumenta logo para R$ 10 mil.”

Como isso levaria à catástrofe econômica, ele concluía que a existência de salário mínimo era estupidez. Eu concordei. E aproveitei para me manifestar também contra a nutrição de crianças. “Se a nutrição de crianças é assim tão importante, por que dar a elas apenas uma pequena porção de comida? Dá logo dez quilos de carne por refeição.” Como isso faria a criança estourar, concluí que a nutrição de crianças é estupidez. Há algum tempo que não vejo esse meu amigo.

Um alemão de 62 anos, residente em Magdeburgo, se vacinou contra a Covid 217 vezes, revelou um estudo na revista The Lancet. Embora desaconsel­hem a prática, os cientistas verificara­m que o homem não sofreu qualquer efeito colateral, e o seu sistema imunológic­o opera sem nenhum problema.

Não sou contra o fato de as pessoas terem um hobby e, como nos últimos cem anos já vi surgirem na Alemanha lunáticos de envergadur­a, fico satisfeito por a excentrici­dade alemã se encontrar, hoje em dia, neste nível. Mas fico desapontad­o.

Ainda me lembro do tempo em que havia quem garantisse que os vacinados tinham inoculado um microchip fabricado a partir de nanotecnol­ogias de geolocaliz­ação 5G, para que o presidente da China fosse informado a cada vez que a gente desse um passo.

As provas eram os objetos metálicos que os vacinados passavam a atrair, visto que o microchip tinha capacidade magnética. Vi os vídeos do garfo colado ao braço. Ora, este alemão deveria ser, neste momento, o centro tecnológic­o mais avançado da Europa.

A fábrica da Apple, ao pé dele, seria uma máquina a vapor. Não poderia sair à rua sem que seu braço atraísse um Fiat Fiorino, o que segundo o estudo não acontece. Que desilusão.

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Luiza Pannunzio

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