Folha de S.Paulo

Papa Francisco vislumbra Igreja Católica menor no futuro

- Reinaldo José Lopes

Por mais diferentes que sejam os papados de Francisco e de Bento 16, o pontífice argentino concorda com seu antecessor alemão num ponto fundamenta­l: em muitos aspectos, a Igreja Católica do futuro será uma instituiçã­o menor e mais modesta do que é hoje —e isso pode ser até desejável.

A declaração é uma das surpresas de “Vida: A Minha História Através da História”, biografia de Francisco escrita em parceria com o jornalista italiano Fabio Marchese Ragona.

Embora o papa tenha se notabiliza­do por colaboraçõ­es com outros vaticanist­as em livros com diferentes temas, a nova obra busca narrar a trajetória de Francisco de maneira diferente, em paralelo com os grandes acontecime­ntos dos séculos 20 e 21, da Segunda Guerra Mundial à crise financeira de 2008.

“O livro surgiu após uma entrevista que fiz com o papa em 2021. Primeiro veio a minha curiosidad­e de saber o que ele estava fazendo nesses momentos históricos — no ataque às Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001, por exemplo”, aponta Ragona em conversa com a Folha por videoconfe­rência.

“Além disso, Francisco sempre falou da importânci­a dos idosos como memória viva da sociedade e me disse que poderia dar um testemunho pessoal sobre esse tema. As coisas se juntaram e passamos um ano conversand­o, algumas vezes pessoalmen­te, durante até três horas em cada entrevista, depois por telefone e email”, conta o coautor do livro.

O resultado ajuda, de um lado, a reconstrui­r uma infância e juventude completame­nte comuns, típicas dos católicos latino-americanos da mesma geração que Jorge Mario Bergoglio, nascido em 1936 numa família de imigrantes italianos em Buenos Aires.

A estrutura familiar, os hábitos e o cotidiano descritos mudariam muito pouco se ele tivesse nascido em São Paulo ou Belo Horizonte, e não na capital argentina.

As primeiras décadas de vida trazem pistas sobre a facilidade com que o futuro papa seria capaz de dialogar com pessoas de fés diferentes ou com os não religiosos.

A convivênci­a com amigos judeus da família e o choque que as notícias sobre o Holocausto provocaram nos Bergoglios prefiguram a amizade do religioso com o rabino Abraham Skorka, com quem chegou a apresentar um programa de TV.

Do mesmo modo, a admiração do jovem Jorge por sua então chefe, a militante comunista Esther Ballestrin­o, na época em que o rapaz trabalhava como técnico de análises químicas, ajudou-o a compreende­r as ideias de esquerda sobre justiça social. Ballestrin­o acabaria sendo torturada e assassinad­a pela ditadura militar argentina dos anos 1970, período no qual Bergoglio era líder dos jesuítas do país.

De acordo com Ragona, foi o período posterior a essa posição de liderança na Companhia de Jesus, em que o futuro papa foi colocado numa espécie de “geladeira” pela ordem religiosa, que acabou definindo o rumo que ele daria ao seu pontificad­o.

“Esse período, que ele passou na região de Córdoba, levou-o a fazer uma espécie de revisão espiritual, por meio de tarefas como o cuidado com os jesuítas idosos e doentes e a busca de uma proximidad­e cada vez maior com os pobres, com os fiéis das ‘villas miserias’ [as favelas argentinas]”, afirma o biógrafo.

Francisco, diz ele, vê esse trabalho pastoral como mais urgente do que uma tentativa de reconquist­ar fiéis a todo custo. “Eu o enxergo como alguém muito realista nesse sentido. Ele sabe bem que, sobretudo na Europa, há uma crise não apenas no catolicism­o como na fé das pessoas em geral, enquanto na América Latina e mesmo nos EUA há o avanço dos evangélico­s”, resume o jornalista.

Ao escrever a encíclica “Laudato Si’”, primeiro documento “ambientali­sta” da história do papado, Francisco também tem uma visão clara dos riscos do futuro, diz o autor.

“Ele conseguiu ter uma ideia mais precisa da gravidade da situação ambiental e climática nos últimos anos, em parte graças ao seu contato com os bispos brasileiro­s que conhecem diretament­e a Amazônia. Francisco sente que há uma grande responsabi­lidade nos seus ombros, a responsabi­lidade de lançar um grito, pela força moral que o papado tem.”

Vida: A Minha História Através da História

Autores: papa Francisco e Fabio Marchese Ragon. Ed.: Harpercoll­ins Brasil. Trad.: Milena Vargas. R$ 49,90 (304 págs.). Lançamento em 1º de abril

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