Folha de S.Paulo

O coquetel que zombava da Lei Seca

- | Daniel de Mesquita Benevides folha.com/geloegim

Com seus mais de 1,80 m, cara de buldogue e severidade cristã, ela irrompia nos bares e botava todos para correr. As taças e garrafas explodiam sob as pedras que atirava. Depois vinham os móveis. Guiada pela mão de Jesus, que um dia lhe apareceu e deu-lhe essa missão, destruía mesas, cadeiras e janelas com os tacos de sinuca largados na pressa.

Carrie Nation foi a face justiceira daqueles que defendiam uma Nação Abstêmia no começo do século 20 nos EUA. Joana D’arc com o charme de um trator, seus propósitos iam do moralismo ao feminismo. Os inimigos, bêbados pagãos, se entrinchei­ravam nos saloons, pubs e tavernas. Antes de arrasar tais antros, ela avisava em altos brados que iria purgar aqueles que ali estavam de seus hábitos maléficos.

O aviso soava como um alarme do apocalipse —principalm­ente depois que Nation passou a usar uma machadinha. Ela feria barris e balcões com a fúria da convicção. O uísque jorrava aos borbotões e inundava as tábuas de madeira do chão. Tombado, o prazer era pisoteado pela virtude, que saía esfregando as mãos.

Morreu antes de ver a Lei Seca tomar conta dos EUA, em 1920.

Se a cruzada de Nation tinha um lado progressis­ta, antipatria­rcal, de luta contra a violência doméstica, foi durante a era da proibição que as mulheres ganharam espaço nos bares, antes dominado pelos homens. A clandestin­idade via com bons olhos o aumento da clientela. Ademais, a festa ficava completa. Em grandes cidades, como San Francisco e Nova York, para cada saloon fechado, abriam-se ao menos três speakeasie­s.

Não à toa os anos 1920 são chamados de loucos ou esfuziante­s. O pecado morava ao lado, em alto estilo. O ingredient­e especial era burlar a lei. Quem encarasse com humor as poções feitas com gim de banheira ou uísque de estábulo logo entrava para o clube dos descolados, que só crescia, com padroeiros como Scott Fitzgerald e Dorothy Parker.

Talvez não se bebesse tanto nessa época como diz a lenda e quer o senso subversivo, mas certamente se bebia mais destilados— o vinho e a cerveja, mais fracos, eram mais difíceis de fazer. Além disso, médicos receitavam uísque para todos os males, de unha encravada até pneumonia, e farmácias vendiam frascos de fortes poções como se fossem loção capilar ou xarope.

Muitos coquetéis nasceram nessa balbúrdia. Nem todos bons, pois na ânsia de mascarar a má qualidade dos destilados caseiros, misturava-se tudo o que estivesse à mão.

Alguns dos melhores coquetéis dessa época vieram de fora dos EUA, com a debandada de grandes bartenders locais para Londres, Paris e Havana, cidades onde o prazer de beber não ficava na moita e não havia guerra de gângsteres e políticos abusando da corrupção para fazer vista grossa.

Entre estes está o scofflaw, cujo nome (“zombar da lei”) remete à votação proposta pelo The Boston Herald para eleger uma palavra que definisse aquela/e que bebesse ilegalment­e. Ganhou essa, que dois meses depois batizou seu próprio coquetel, em um dos grandes bares de Paris, o Harry’s ou o Maxim’s —a disputa ficou em aberto.

É um drinque perfeito para celebrar este dia 22. Há 91 anos, o presidente Roosevelt assinou a lei que acabava com a proibição. Por ironia, esse também é o dia internacio­nal da água. Cuide bem de seu chopp e seu scofflaw.

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Sergii Chernov/ Adobe Stock

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