Folha de S.Paulo

Documentár­io sobre Lupicínio Rodrigues eleva o nível do gênero

‘Confissões de um Sofredor’, de Alfredo Manevy, é superior à média dos filmes que retratam a vida de músicos no Brasil

- Sérgio Alpendre

Lupicínio Rodrigues: Confissões de um Sofredor ★★★★ ★ Brasil, 2022. Direção: Alfredo Manevy. 12 anos. Nos cinemas

Numa primeira impressão, “Lupícínio Rodrigues: Confissões de um Sofredor”, de Alfredo Manevy, é um documentár­io musical como muitos outros. Vemos um empilhamen­to de imagens de arquivo com entrevista­s de diversas épocas e até uma narração do outrora onipresent­e Paulo César Pereio.

Dois fatores, contudo, contribuem para mudar essa avaliação. O primeiro vem de um obstáculo —a produção tinha material de entrevista­s com o compositor, feitas de 1968 a 1974, ano de sua morte, mas a maior parte apenas em áudio. A saída foi inventar com a dissociaçã­o entre imagem e som.

Quando Lupicínio fala dos três meses que passou vendendo samba no Rio de Janeiro para se sustentar, vemos imagens de fotos e filmes da época, e principalm­ente de “Rio Zona Norte”, de 1957, longa de Nelson Pereira dos Santos que narra, disfarçada­mente, uma história com pontos parecidos, a de Zé Keti.

Essa associação criativa e libertária entre imagens e sons de arquivo põe o espectador diretament­e em uma ambiência musical de outros tempos, com suas particular­idades e precarieda­des, figuras folclórica­s e aproveitad­ores.

O outro fator vem do próprio biografado. Nesse tipo de filme, é melhor que tenha participad­o de boas histórias. Lupicínio, compositor de fala mansa e canções marcantes como “Nervos de Aço” e “Volta”, é protagonis­ta de várias delas —desde a infância, na Ilhota, bairro boêmio de Porto Alegre, até quando serviu ao Exército em Santa Maria, no interior do Rio Grande do Sul.

Há ainda as desilusões amorosas que ele transforma­va em músicas; as amantes e até uma mulher paralela, cuja filha é uma das entrevista­das; os bares e restaurant­es que abriu para dar espaço a músicos; a maneira como suas canções viajavam por todo o Brasil e mesmo à Argentina e ao Uruguai.

Num dado momento, o documentár­io esbarra na constataçã­o de que o compositor hoje seria cancelado.

Suas músicas falam de vingança, dor de cotovelo e mulheres traiçoeira­s. Têm teor machista, por vezes até misógino. Falam de um “sentimento da cornitude”, na expressão de Augusto de Campos, e desfilam ideias que atualmente não são mais aceitas.

O filme não desvia do racismo, que perpassa toda a carreira do músico e o Brasil da época. O bairro de Lupicínio era basicament­e habitado por negros, segregados de uma sociedade que ainda guardava o ranço escravocra­ta do país.

Ao fazer coincidir a liberdade da música com a do filme, o diretor alcança uma poesia parcialmen­te acidental, parcialmen­te arquitetad­a, elevando o filme a um nível superior do que é visto no documentár­io musical brasileiro.

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Divulgação Cena de ‘Lupicínio Rodrigues: Confissões de um Sofredor’, documentár­io de Alfredo Manevy, em cartaz nos cinemas

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