Folha de S.Paulo

Afeição de Mário de Andrade pelo corpo masculino é tema de mostra

Exposição no Masp retrata homoerotis­mo com cerca de 90 obras do modernista, que passam por trabalhos artísticos e retratos

- João Perassolo

Nas suas expedições pelas regiões Norte e Nordeste do Brasil no final da década de 1920, Mário de Andrade fotografou a população ribeirinha e os trabalhado­res. Numa das fotos, um homem sem camisa trepa num coqueiro; noutra, um pescador de tornozelos de fora joga a rede ao mar. Há uma energia viril em ambas as imagens.

Olhadas isoladamen­te, essas e outras tantas fotografia­s são registros das viagens do escritor pelo interior do Brasil. Quando colocadas lado a lado com a sua coleção de obras de arte, seus escritos e sua história de vida, as imagens podem ser lidas a partir de uma perspectiv­a homoerótic­a.

Essa é a premissa da exposição “Mário de Andrade: Duas Vidas”, que abre para o público nesta sexta-feira, no Masp, o Museu de Arte de São Paulo. Para a seleção das obras, as organizado­ras da mostra, Regina Teixeira de Barros e Daniela Rodrigues, partiram do debate recente acerca da homossexua­lidade do modernista, detonado pela revelação, em 2015, de uma carta escrita por ele para Manuel Bandeira na qual ele aborda a sua sexualidad­e. O tema era um tabu nos debates sobre Mário de Andrade.

No subsolo do museu, estão 88 obras, entre fotografia­s tiradas por Mário de Andrade e trabalhos de outros artistas de sua numerosa coleção de arte, que giram em torno de sua afeição pelos homens. A seleção do que está exposto foi feita com delicadeza — Teixeira de Barros diz não se tratarem de obras eróticas.

“Tem muitos desenhos que são cabeças de homens, corpos ou torsos. É uma multiplici­dade de expressões de rostos masculinos e de corpos masculinos”, diz Teixeira de Barros, ressaltand­o que a coleção, pertencent­e em grande parte ao acervo do Instituto de Estudos Brasileiro­s da Universida­de de São Paulo, data da primeira metade do século 20.

Logo no começo da mostra, ao lado da pintura “O Homem Amarelo”, uma das mais conhecidas de Anita Malfatti, estão desenhos de homens nus de Clóvis Graciano e uma ilustração de Candido Portinari no qual as coxas grossas de um outro homem são acentuadas. As obras estão próximas a uma aquarela de Flávio de Carvalho retratando uma figura masculina de costas.

As organizado­ras destacam que muitos dos trabalhos em papel da mostra não ficavam expostos nas carregadas paredes da casa de Mário de Andrade, mas sim guardados em gavetas, o que dá à exposição um caráter íntimo e pessoal.

Teixeira de Barros lembra um texto em que o escritor diz que os desenhos têm algo de efêmero—ao contrário da vocação para o eter nodas pinturas—eque eles deveriam ser mantidos em pastas para serem folheados.

“Esse contato era muito particular, não era de domínio familiar. Eram coisas que ele tinha para ele”, afirma a organizado­ra, em referência ao conjunto de ilustraçõe­s.

Sobre as fotografia­s, ela destaca que, embora o autor tivesse fotografad­o arquitetur­a e paisagem nas suas incursões pelo interior do Brasil, ele decidiu ampliar fotos de homens, em alguns casos várias vezes e, em outros, cortando os elementos ao redor para deixar em evidência esses corpos masculinos.

Essas imagens foram pinçadas do arquivo demais de 2.000 fotografia­s em preto e branco e sépia do autor de “Macunaíma” e estão agora na mostra ao lado de autorretra­tos do escritor. Em alguns deles, Mário de Andrade aparece imitando as ações dos trabalhado­res que fotografav­a, enquanto em outros está sorridente e relaxado, diferente da pose de intelectua­l com que era habitualme­nte representa­do.

Há ainda uma pequena seleção de arte sacra, com uma escultura de Cristo na cruz, por exemplo, com um pano esvoaçante que mal esconde apele. No contexto da exposição, a obra pode ser lida como uma representa­ção clássica de corpos masculinos, não de figuras religiosas.

Mário de Andrade: Duas Vidas

Masp - av. Paulista, 1.578, São Paulo. Ter., das 10h às 20h; qua. a dom., das 10h às 18h. Até 9 de junho. R$ 70; grátis às terças

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Ieb-usp/divulgação Aquarela de Flávio de Carvalho, ‘Homem’, datada de 1933

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